4 de julho de 2010

Despedidas

Um rolo de papel se acumulava no chão. Eu sentava ali mesmo no tapete para ler as muitas páginas que o aparelho de fax havia produzido durante a noite. Foram vários dias, durante alguns meses. Stela havia se mudado para o Canadá com uma proposta de emprego “irrecusável”, as páginas escritas substituíam de maneira provisória, pouco ortodoxa e poética, suas sessões. Um desconforto físico para ler as palavras, garranchos mal reproduzidos em um papel enrolado, não raras vezes, incompreensíveis aguçava a sensação de que aquilo não era psicoterapia. Tentava me inspirar ou consolar com as experiências de Freud, lia suas cartas para tantos que procurou compreender à distância. Inútil. A sensação de desconforto permanecia, às vezes apenas amainada, por telefonemas em horários bem combinados e curtos em que proferia algumas obviedades, mais para dar à Stela o conforto de ser ouvida em sua própria língua do que com qualquer outro propósito. Encontrei um profissional que falava português na cidade em que ela estava e a indicação foi aceita com alguma reserva. “Comecei lá com ele, obrigada. Olha, obrigada mesmo! Sem você, não teria coragem de vir, não teria conseguido suportar os primeiros meses. Acho que não volto mais ao Brasil, se um dia vier ao Canadá me avise. Minha cidade é muito afastada das capitais, dificilmente, você viria até aqui, mas eu vou até onde você estiver.” Enquanto estive naquela consultório, enquanto aquele aparelho de fax funcionou, ao entrar na minha sala pela manhã, via uma ausência.

Era ainda um homem bonito aos 80. Vestia-se com simplicidade e elegância. Era delicado na voz e nos gestos formais. Mesmo em dias em que estava mais cansado e caminhar parecia um grande esforço, fazia questão de subir os degraus até minha sala. Em um desses dias, sugeri que utilizássemos a sala de um colega no térreo da casa, e foi a única vez que sua voz tornou-se ríspida: “Sou velho, portanto, faço questão de fazer tudo que ainda posso. Caso seja necessário, eu mesmo solicito, obrigada.” Meu desafio era interromper suas maravilhosas narrativas sobre sua participação nos maiores eventos do país, do mundo, na vida política e acadêmica da cidade que viu nascer, para propor reflexões para seu projeto de vida. Queria estreitar vínculos com o filho caçula, adolescente faminto de expectativas. Esforçava-se para aplainar as arestas com os filhos adultos, distantes de mágoas. Sua suavidade de gestos e lentidão de caminhada contrastavam com a urgência de mudança. Ao final do ano, “produtivo em muitos aspectos”, despedimo-nos com um abraço, o primeiro, e desejos mútuos de “Boas Festas!”. Ao retornar das férias, recebi um aviso da família comunicando seu falecimento, sereno, nos primeiros dias do ano. Ao ver no anúncio de jornal em que a família agradecia os pêsames, os nomes dos filhos unidos, dispostos na sequência em que ele os descrevia, senti muitas coisas, sobretudo, gratidão. Sim, fizemos tudo que ainda podíamos.

Um dia, Roberto sumiu, sem aviso. Não consegui associar sua saída a nada. Fiquei um pouco preocupada, Roberto era muito jovem, tinha uma vida bem difícil, estava muito frágil emocionalmente. Discuti o caso em supervisão. “Psicoterapeutas não perseguem seus pacientes.” “Não tem psicoterapia compulsória.” “Às vezes, o paciente não se despede para manter o vínculo.” “É preciso acostumar-se às várias maneiras que os pacientes têm de se despedir.” “Mas, é preciso confiar na sua intuição. Se está preocupada, ligue, mas apenas uma vez. Lembre-se, propósito é ajudá-lo, não é aplacar sua ansiedade.” Roberto não atendeu ao telefone. Liguei algumas outras vezes, esqueci. Passaram-se muitos anos, nunca soube o que aconteceu com ele.

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