13 de fevereiro de 2010

Penélope Charmosa

Não era propriamente bonita, mas chamava atenção com suas roupas discretamente provocantes. O cabelo longo, cuidadosamente loiro, a maquiagem sempre renovada e as unhas - em variados tons de vermelho - impecáveis. Queixava-se de dores, alergias, insônias, problemas gástricos... Entre uma e outra queixa, alguns detalhes da vida, principalmente o trabalho.

O chefe, vivia em outra cidade, vinha poucas vezes a Brasília, apressado. Conversavam muito sobre seus planos futuros - os dele - e ela se considerava parte daquela vida que ele descrevia com detalhes de glamour. O chefe era "a razão de sua vida" e não poucas vezes, o celular especial que era só para falar com ele interrompia a sessão. Ele sempre tinha novas demandas e a valorizava muito, "acho que ele tem uma queda por mim, mas é sério e casado."

O namorado era o contraponto ao chefe. Era "doido" por ela e por tudo mais. A vida com ele era sempre cheia de surpresas e mudanças e tratamentos e crises. Falava dele sempre às pressas, uma narrativa de radio novela, diálogos intensos com ranger de portas, gritos, sussurros. Falava sempre que não podia deixá-lo, "coitado, não está bem, precisa de mim!"

Umas poucas vezes, falava sobre as amigas, dividiam-se em dois times: as do passado e as do presente. As do passado, via pouco, mas com elas compartilhava valores tradicionais. As via pouco porque as três eram casadas, "não sei, acho que têm ciúmes de mim, nos afastamos,não sei".As do presente, mudavam com frequencia, era tudo muito intenso no começo, passavem muito tempo juntas, usavam as mesmas roupas, perfumes, liam os mesmos livros. Mas, então, surgiam os homens, "aí tudo muda né? elas são muito mais soltas, fazem umas loucuras! estou saindo com uma pessoa do curso." Sim, os cursos. Eram muitos, ikebana, danças circulares, pós-graduações em sua área, uma infinidade e atividades que tomavam o pouco de tempo que sobrava entre os telefonemas e e-mails do chefe, as crises do namorado.

A família, era o tema menos mencionado, o mais difícil. Tinha muitos parentes, mas se relacionava pouco com eles. Vivia com os pais, mas também se relacionava pouco com eles. Foi criada por uma tia, que morrera há poucos anos, "as alergias começaram logo depois da morte dela".

O carro. O carro era uma de suas maiores alegrias, ou melhor, os carros. sempre lindos e novos, importados, com todos os acessórios. demandavam uma pesquisa exaustiva antes de serem comprados. E um londo tempo de dúvida. "não sei não, vi um mais bonito", "talvez se tivesse esperado mais, poderia ter comprado um mais novo, mais rápido, com um câmbio diferente, ou de outra cor".

As jóias. Colecionava brincos e pulseiras. Exibia-as com discrição, mas sempre estavam lá. Endividava-se para comprá-las. "foi caro, mas é coisa boa, não pude resistir, a verdade é que nem tentei."

Assim, passaram-se anos. As dores cada vez menos frequentes, "as alergias sumiram". O chefe arranjou uma amante e foi trabalhar em outro lugar, mas ela manteve-se no emprego, com apenas um celular, que agora mantinha desligado nas sessões. Com uma das amigas brigou tão feio que foram parar na polícia. Outra tia morreu. Um dos sobrinhos escapou por pouco. Cuidou dos pais idosos em mais de uma internação. O namorado voltou para cidade de origem e se casou. Apaixonou-se pelo tênis e agora é no clube que encontra os "conhecidos, amigos são muito raros sabe?"

Homens são seu maior desafio. Muitos a cortejam, saem com ela "como posso dizer que sou virgem aos 40 anos? quem vai acreditar? ou querer?"
Nas sessões, continuávamos falando - dramatizar jamais foi uma possibilidade - sobre trabalho, jóias e carros. A vida, as mudanças, os desafios, eram como notas de rodapé. E o cabelo deixou de ser tão cuidosamente loiro e, às vezes, vinha sem maquiagem. Uma vez veio até com o cabelo molhado e uniforme de tênis. E comprou um carro popular, com medo de assaltos, "sou uma mulher sozinha, tenho que me cuidar". Mantinha as jóias. A única vez que me ligou "de emergência" foi para perguntar como reagir ao presente de um cliente, uma jóia "eu já tenho, mas não quero ser indelicada. como dizer não?"

Como se tornara uma mulher sob aquela personagem de desenho animado? Muitas vezes me perguntei de onde vinham as mudanças. Nossa relação se parecia tão pouco com o que se convenciona chamar de psicoterapia, ainda mais psicodramática.
Como para outra Penélope, a grega, o tempo de espera era em si mesmo, a cura.

3 comentários:

  1. Soraya Pereira, nossa querida colega, não conseguiu postar seu comentário, mas nos enviou, lá vai:
    "Como conseguem colocar num papel a diâamica de pensamentos e desejos???
    Ah! se eu conseguisse me expressar tão bem. Fico com uma inveja saudável.
    Parabéns!
    Bjão,
    Soraya
    13 Fevereiro, 2010 12:25"

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  2. Que delícia de crônica! Leve, profunda, surpreendente!
    Adorei conhecer "Penélope Charmosa"...
    Quero mais!
    Parabéns e muitos bjos,
    Vania

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  3. Tratam-se de duas almas iluminadas e dois pensadores brilhantes... Os cabelos, nem um pouco loiros... Dois corações que batem junto com o nosso, carinho constante.
    Parabéns!
    Bjo,
    Kayano.

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