9 de agosto de 2009

Em família

Uma semana na praia. Sonhara com esse dia tantas vezes que custava a acreditar que ele havia chegado. O trabalho era uma paixão que tomava todo o seu tempo e nos últimos anos, com a chegada dos filhos, os momentos de lazer eram raros. Os preparativos para a viagem, o avião, as duas horas no carro alugado...O sol, o cheiro do mar, o céu quase tão azul quanto o do cerrado tornavam tudo mais menos importante.
A pousada, reservada com meses de antecedência, era linda e “perfeita para casais com filhos”, como havia lido no anúncio. A areia da praia logo em frente ao chalé era fininha e o mar raso e calmo. Os dois meninos entraram imediatamente na água e ela deitou-se na espreguiçadeira para ler um dos muitos livros que ganhara no Natal. Mas antes, sentou-se por alguns minutos observando-os brincar, lembrou-se de sua própria infância, passada em uma cidade do nordeste. Uma infância muito diferente da que proporcionava aos filhos, sempre tão atarefados em aulas extras e com tão pouco tempo para brincar assim, correndo livres, apenas de calção, sem os brinquedos sofisticados, sem preocupação com segurança, com a violência das grandes cidades.
A alegria desse momento durou tanto que o marido, que demorou a chegar à praia terminando de retirar as coisas do carro, ainda a viu sorrindo e arriscou perguntar:
- A baía aqui é tão bonita. Vamos passear de lancha amanhã?
Ela era muito avessa a qualquer tipo de esporte e sempre tinha a desculpa do cansaço para evitar aventuras nas férias. Em geral, para aumentar as chances de que ela aceitasse, ele esperava os últimos dias para propor as caminhadas, ou os passeios de bicicleta, de barco. Mas dessa vez, ela não hesitou:
- Claro!
Ele ficou felicíssimo, beijou-a e entrou na água para brincar com as crianças. Ela leu, tirou uma soneca, almoçou sem insistir que os meninos comessem legumes. No fim da tarde, ainda de muito bom humor, foi com o marido até o píer para contratar o passeio de barco. Em poucos minutos resolveram tudo. O único inconveniente era que a lancha, com capacidade para seis passageiros, só saia com lotação completa. O capitão avisou que haveria um casal com eles durante o passeio.
As crianças, excitadas com seu primeiro passeio de lancha, acordaram cedo, se arrumaram rápido e tomaram café da manhã sem nenhum incidente. Chegaram ao píer brincando de imaginar como seria o casal: recém casados em lua-de-mel, velhinhos comemorando bodas de ouro, namorados... Com oito e seis anos, os garotos já não faziam tanta algazarra e nem demandavam atenção integral, ainda assim tinham algum receio de que as crianças pudessem incomodar os desconhecidos e aproveitavam a brincadeira para orientá-los a brincar de modo a não comprometer a privacidade do casal. Os meninos vieram depois de alguns anos de casamento, foram desejados e planejados, eles se revezavam no cuidado com eles e tinham orgulho de não ter precisado de babás. Sabiam bem a diferença entre uma viagem a dois e uma viagem de família.
A lancha era bastante espaçosa, os meninos ouviram atentos e maravilhados a todas as explicações do capitão e imediatamente ocuparam o lugar que ele indicou como “o melhor para ver a paisagem e brincar”. Ela estava distraída procurando um bom lugar para estender a toalha quando ouviu às suas costas o capitão iniciando as apresentações.
Em um primeiro momento, ainda sem se virar, não prestou muita atenção aos nomes, mas pelas vozes imaginou um casal em torno dos trinta anos, já vivendo juntos há alguns anos, mas ainda sem filhos. Gostava de imaginar histórias sobre as pessoas e era mais divertido quando não as via porque seu treino profissional permitia “adivinhar” muitas características e vivências a partir da aparência, dos gestos, das roupas.
Ao se virar, a surpresa foi tanta que ela gaguejou ao cumprimentá-los e não pôde disfarçar seu desagrado. O marido, depois de tantos anos de convivência, compreendeu imediatamente a situação, sem que ela precisasse explicar, e foi ágil em propor uma distribuição de espaços que permitia que o casal ficasse com a melhor vista e fora de seu campo de visão. Os meninos cumprimentaram os recém-chegados distraidamente, estavam muito interessados em definir com o ajudante o horário e o cardápio do lanche.
Ela murchou. No primeiro momento, pensou em inventar uma desculpa e sair, mas seria uma descortesia tão grande com o casal, uma decepção para o marido e os meninos... Depois pensou em tomar o antialérgico que carregava sempre na bolsa, mas usava apenas em último caso, porque provocava sonolência... Finalmente, concluiu que não havia nada a fazer e apenas rezou para que eles não viessem falar com ela durante o passeio... Acomodou-se na toalha, pegou seu livro e olhando a beleza do mar tentou recuperar a sensação do dia anterior.
Uma semana na praia. A cidade era minúscula, com certeza iriam se encontrar muitas vezes. Até poderia escapar durante esse passeio, mas e nas outras ocasiões? Aproveitou muito pouco o passeio, os meninos chegaram a perguntar por que ela estava tão calada, alegou um pouco de enjôo, desculpa que também justificou que nem olhasse para o lanche. O marido brincou muito com as crianças e, de quando em vez, trocou com ela olhares cúmplices. Foram quatro horas intermináveis em que pouco conseguiu se concentrar no livro ou na paisagem. Pensou em tudo que deixara para trás para ter essa semana na praia, os projetos na instituição pública, os pacientes no consultório particular, as análises das entrevistas para a tese. Tentara olhar o mínimo possível na direção do casal, não trocou mais do que meia dúzia de frases. Agradeceu os elogios aos meninos, que de fato se portaram muito bem. Repetiu a desculpa do enjôo que na hora até sentira de fato. Comentou sobre os riscos do turismo predatório, de um modo tão vago que acelerou o término precoce do debate entre o capitão e seu marido.
Na volta, antes mesmo do barco atracar, o casal aproveitou um momento em que ela estava sozinha, com os olhos abertos e o livro fechado, para dizer apressadamente, alternando as frases:
- Nós estamos muito bem, viu?! Desde a última sessão, não tivemos mais nenhuma briga. Acho que aprendemos a resolver os problemas sem agressões. Muito obrigada!
-Passamos uma semana aqui e vamos embora hoje à noite. Vocês vão gostar daqui, é muito calmo!
- Que bom encontrar a senhora! Que linda sua família! Nós sempre imaginamos como seria a família da nossa terapeuta de família...
-Bem, não queremos atrapalhar...
- Melhoras para seu enjôo...
O marido e as crianças aproximaram-se, trocaram as últimas despedidas. O casal partiu sorridente, voltando-se algumas vezes para acenar para as crianças que corriam pouco atrás deles.
Recolheu a toalha, guardou o livro na mochila, pegou a mão do marido para sair da lancha. O capitão lamentou que ela não tivesse aproveitado o passeio e ofereceu um desconto para um passeio mais curto. Mais juntos do que se houvessem combinado, ela e o marido responderam sem hesitar:
-Não, obrigada.
Apressou o passo para alcançar os meninos e ainda segurando forte a mão do marido, pensou que, a despeito do desconforto de perder a privacidade, o passeio com o casal de pacientes havia sido bom. Era gratificante ver o resultado de seu trabalho.
Esqueceu os entraves burocráticos que atrasaram seus projetos na instituição pública, esqueceu os pacientes mais graves que referira ao seu sócio, as dificuldades na transcrição das entrevistas da tese que estava escrevendo.
Uma semana na praia, só com a família.

Nenhum comentário:

Postar um comentário