Disseram-lhe uma vez: “Seu caso é de livro!” O que queria dizer isso? Não sabia e desconfiava que não fosse bom.
Ela não queria ser “de livro”, ou melhor, não se sentia “de livro”, previsível, comum. Um conjunto de dores incomuns e variáveis, um sofrimento de anos. Insuportável. Não fosse católica, teria posto fim ao sofrimento, mas temia a morte. Não o Inferno, mas o Céu também. Temia a morte, temia tornar-se invisível, como se sentia.Inviável.
No trabalho até se destacava aqui e ali, ocupava mesmo uma posição de chefia: coordenadora. Contudo, sentia-se sempre invisível, desconheciam-na. “Uma atriz.” Sim, sentia-se uma atriz. Quisera mesmo estudar teatro na juventude. O pai preocupado com seu futuro, com razão, fizera-a estudar algo mais prático. Completou a faculdade, fez um concurso disputado, passou e agora era coordenadora da seção. “Atriz”, “Dramática”, “Histriônica”. Preferia isso tudo, com o tom pejorativo que os terapeutas e ela mesma empregavam do que o infame: “De livro.”
Perguntou, então, a essa nova terapeuta, que se dizia “psicoterapeuta psicodramatista”, perguntou sem hesitar porque ensaiara muitas vezes antes: “Você me considera um caso de livro?”
Quase ficou com pena da pobre, coitada, deveria ser inexperiente. Parecia nova, mas talvez não fosse... Era séria demais para ter a idade que parecia. Ou mais velha do que parecia porque era séria. Emendou: “Já me disseram isso... Era uma psiquiatra muito experiente. Então, quero que você me diga se ela estava certa...”
Pronto, preenchera o silêncio, ganhara tempo para a terapeuta. Simpatizara com ela, queria ouvir uma boa resposta e ficar. Depois de tantos médicos, psiquiatras e terapeutas e cartomantes... Queria ficar. A sala era estranha, objetos meio desencontrados, uma plataforma de madeira no centro da sala...
Fez ar de ansiedade e expectativa. Gostava dessa sua expressão, especialmente quando a usava com alguém pela primeira vez, porque dificilmente percebiam que disfarçava o desafio. Sentia-se nessas horas uma esfinge: “decifra-me ou devoro-te”. Talvez fosse mesmo de livro, uma tragédia, grega.
A psicoterapeuta séria sorriu e respondeu que, sim, ela lembrava algumas personagens de livros que ela havia lido e perguntou se ela gostava de literatura.
Boa resposta. Ela sabia que a outra fizera da resposta uma pergunta e esse era o jeito dos psicoterapeutas – ao menos daqueles que valiam esse nome empolado – fazerem pensar/sentir coisas diferentes das que sabemos. Queria ficar, sentia um cheiro de grama sendo cortada no jardim...
“Não, não gosto de literatura. Gosto de música.”
“Que música você acha que parece com você?”
Ficou. Usou os tais objetos, até ganhou um, um pequeno ninho de passarinho meio amassado. Descobriu que a tal plataforma chamava-se tablado, mas nunca fez mesmo questão dele. Era uma atriz sem tablado. A história da música rendeu e, muitas vezes, sentiu aquele cheiro de grama cortada.
Ontem a psicoterapeuta psicodramatista, que parecia séria, mas é engraçada e não é mesmo tão jovem, perguntou: “Você se importa se eu contar sua história em um livro?”
17 de agosto de 2009
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Oi Valéria...Devanir, adorei a história. Fiquei com várias vontades nesse texto, passeando pelas várias possibilidades: ter essa terapêuta, ser essa terapêuta e até ser essa pessoa que acha que é um caso para livro. Bárbaro.
ResponderExcluirPaula L Freire - aluna Sedes psicodrama