25 de julho de 2009

Morte

Descobri o que era a morte quando a conheci de perto, não nos corpos das mesas de anatomia, mas na dor de um cachorro, cobaia de meus estudos em farmacologia. Descobri como era combater a morte e perder, decidi combater apenas a dor. Ainda assim, recém-formada, fui trabalhar em um hospital. Nos hospitais, a batalha contra a morte é diária, mas não nesse.
Era um hospital de re-habilitação, nosso foco era a vida, a retomada da vida, após um azar na roleta genética ou um incidente trágico. Tratávamos da vida e todos os dias eu via, sentia, a vida triunfar sobre as mais duras limitações. Cada família que mostrava seu amor por uma criança que nunca atingiria os modelos de felicidade vigentes; cada pessoa que descobria em si a força e a vontade de transcender a dor da imobilidade e da dependência me afastava mais e mais da idéia da morte, da certeza de que ela sempre vence.
Até que conheci a família Pereira. Os Pereira eram quatro, uma mãe e seus três filhos, todos do sexo masculino, dois portadores de distrofia muscular progressiva, tipo Duchenne. O nome comprido assusta, a doença mais ainda. Essa é uma doença hereditária que causa a degeneração progressiva dos músculos, atinge apenas meninos, é transmitida pela mãe, os primeiros sintomas aparecem por volta dos quatro anos de idade e a perda de mobilidade prossegue até o final da adolescência, quando a perda da capacidade respiratória conduz ao óbito na totalidade dos casos.
Na família Pereira a morte era uma presença constante, D. Sílvia já havia perdido um dos filhos vítima da doença quando a conheci e um de seus outros filhos, Cláudio de 21 anos, estava restrito ao leito. Bernardo, com 16 anos, já apresentava dificuldades para caminhar. Pedro, o caçula de 13 anos, não era portador da doença. Cláudio me ensinou a rir da morte, Bernardo me ensinou a compreendê-la e D. Sílvia me ensinou muito sobre a vida, sobre o que é dar a vida, ser mãe. Pedro era muito maduro para sua idade, ajudava a mãe a cuidar dos irmãos, era o que mais sofria.
Escolhi o nome Pereira porque a pereira é uma árvore que dá excelentes frutos e significa “Vida longa” na cultura oriental. Os Pereira viviam uma vida curta, porém intensa e seu exemplo me acompanha sempre e me ajudou muito a lidar com a presença da morte, cada vez mais freqüente, à medida que envelheço. Quando escolhi não combater a morte de frente, eu era muito jovem e ninguém tinha morrido.
No início, eu tentei fugir dessa família, da presença da morte na vida deles, mas não pude. Eu era a única psicóloga na equipe que acompanhava os portadores de Duchenne, eu conduzia o grupo de pais ao qual D. Sílvia comparecia mensalmente, o grupo de adolescentes que se reunia quinzenalmente e acompanhei a assistente social e a fisioterapeuta que faziam visitas domiciliares a Cláudio.
Na primeira visita à casa pobre na qual D. Sílvia morava, o mais impressionante foi a alegria da família. Receberam-nos com muita deferência como era comum, mas a presença dos amigos e vizinhos e a música que vinha do quarto de Cláudio eram um diferencial importante em relação ao clima solene que marcava a maioria das visitas. As famílias sentiam-se de algum modo avaliadas pela equipe, mas essa família parecia nos receber como parentes distantes, com uma hospitalidade alegre, recheada de histórias contadas durante uma visita a todos os cômodos da casa. O quarto de Cláudio, com uma grande janela que permitia que ele interagisse com os vizinhos sem sair da cama, era o cômodo mais iluminado e ruidoso.
A música alta foi abaixada por um dos amigos que lia para ele quando entramos e ele nos recebeu com um largo sorriso e um cumprimento em voz baixa, porque ele já sofria com as dificuldades respiratórias. Fez logo um gracejo para a fisioterapeuta, uma moça solteira quase da idade dele e muito bonita. Na seqüência, elogiou também a mim e à assistente social, ressalvando que o fazia com respeito por sermos casadas.
Foi especialmente atencioso comigo porque me interessei pelo livro que seu amigo lia e elogiei a música. Conversamos muito, ele era um jovem inteligente e muito bem humorado, era fácil esquecer que era praticamente um paciente terminal. Mas ele também falava, sem piadas, mas com naturalidade sobre sua morte próxima e mostrava que sua alegria não era uma negação de sua doença, era sua maneira de enfrentá-la. Cláudio ria de tudo, ria até da morte, mas não porque não percebesse as dificuldades da vida ou as dores da perda, mas exatamente porque as sentia agudamente e as combatia com as armas de que dispunha, seu senso estético e sua alegria. Vi Cláudio apenas essa vez. No mês seguinte ele foi internado em outro hospital para ter suporte respiratório, faleceu poucos meses depois.
Pedro ainda freqüentava o hospital dois anos depois, quando eu mudei de emprego. Nesse período, foi sempre o mais bem informado sobre sua doença. Coube a ele conduzir uma das discussões mais acaloradas do grupo de adolescentes, uma discussão sobre paixões e namoros com pessoas com doenças fatais. De um jeito muito suave, ele defendia a importância de todos eles terem vida social e, idealmente, namorar e ter vida sexual. Dizia que uma das maiores belezas da vida era o amor e que era uma sorte saber que esse amor não enfrentaria a rotina, o tédio, a velhice. Defendia que eles podiam viver um “amor de novela, sempre jovem”. Os outros jovens, incluindo meninas com outros tipos de miopatia, discordavam dele, diziam que era difícil sair, arranjar namorados com seu jeito esquisito de movimentar ou com a cadeira de rodas. Nas duas sessões que durou essa discussão e em várias outras sobre outros temas, Bernardo afirmava a importância de não “morrer de véspera”, de encontrar alternativas concretas – amizade com os vizinhos, na igreja, no hospital – para a solidão, “pior e mais mortal que qualquer doença”. Mais do que os argumentos, foram as experiências compartilhadas de paquera, primeiro beijo, primeira transa de Bernardo que incentivaram os outros membros do grupo a se aventurar no amor. Bernardo uma vez me disse que queria ser professor, acho que fomos seus primeiros alunos.
D. Sílvia sempre levava Pedro às reuniões de família. Um dia, fizeram uma cena juntos. A história nem era deles, a história era de uma moça que descobrira recentemente que seu filho de cinco anos tinha a doença. Sílvia entrou na cena para ser a avó da criança e Pedro (o único do sexo masculino no grupo naquele dia) representava o pai. A cena foi muito emocionante, especialmente para Pedro que dizia no papel que desempenhava que preferia que fosse ele a ter a doença. Nos comentários, Pedro disse à mãe e a todos nós que sempre pensara isso, mas que não tinha coragem de dizer para não magoar a mãe: “Eu não queria ser diferente, eu queria ser como meus irmãos mesmo que morresse cedo. Eu não queria ficar sozinho com minha mãe, ver ela sofrer o resto da vida.”
Sai do hospital pouco tempo depois e passei muito tempo sem me lembrar dessas cenas. Nos últimos anos, a Morte se fez presente muitas vezes na minha própria vida, recordar a história dos Pereira me dá alento e esperança.

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