14 de julho de 2009

Loucura

O corredor cheira o tempo amarelado pelos xixis-remédios-eletro choques. O arquivo verde e pesado que eu abro com o consentimento da médica, mas devidamente inspecionado pela psicóloga com a anuência da assistente social tem um sub cheiro, variação do amarelo do corredor mais o sufoco dos prontuários.
Lá estava a pasta dela: Ivonete. Mas poderia ser Joana, Maria Helena, Djanira, Das Dores. Todos estes nomes brasileiros carregados de demandas, descendências, esperanças, tudo recoberto pelo glacê da inconsciência.
O prontuário não é novo. Tem marcas de todos os doutores que a medicaram e que talvez tenham tido a fantasia grandiosa (loucos!) de cura. Anotações de algumas entradas e saídas, altas, descrição de melhoras e pioras.
Ivonete faz um balanço em sua cadeira com olhar perdido. Mas pode ser magnífica em outras horas.
Junto com a descrição de como se deu o primeiro surto (“A paciente diz ser a Virgem Maria, diz estar operando milagres, diz que seu hímen está sendo reconstituído, diz que salva pessoas de acidentes, diz...”) desenhos, cartas, bilhetes recolhidos pelo setor de terapia ocupacional do hospital. Desenhos totalmente sem formas, feitos a lápis e por cima, massacrando as linhas, rabiscos de giz de cera, revelam um talento interessante, mas abortado pela loucura.
Ivonete sorri, gentil, quando conversamos e despregamos signos aéreos, de pouca valia para o mundo dos vivos, mas de grande interesse para pássaros e anjos. Eu sei. Ela não me vê. Ela não vê ninguém. Somos apenas candidatos a pedidos de milagres dos quais ela necessita para dar conta de sua usina de culpas. Caso consiga operar milagres, é boa (sic). Se não o faz, é uma monstra (sic).
Guarda ainda as letras redondas e mineiras de professora do interior. Cartas e bilhetes são endereçadas para seres anônimos, com a lógica inapreensível para outros sem chave do sagrado de seus textos. Outros escritos para o seu pai, morto, cheio de pedidos de clemência e perdão, informando de sua virgindade de moça direita.
Nenhum de seus escritos fala dele. Não e não. Seu nome não pode ser pronunciado jamais, pois o pai, no céu, lugar evidentemente adequado para seres de tamanha bondade, pode ficar chateado.
O relato médico nos diz que o pai morre ao saber da perdição de Ivonete com o filho de um inimigo, vizinho de fazenda. A desavença, a bem da verdade, não é exatamente entendida, pois o motivo primeiro está perdido na neblina dos anos e nem ninguém sabe direito o que aconteceu (sic).
A família de Ivonete não faz qualquer acusação: o enterro segue lento patinando na culpa silenciosamente imputada a uma paixão descontrolada. Ninguém diz nada. Apenas o vapor caustico da culpa corrói tudo, destrói tudo.
O sorriso doce e distante de Ivonete reitera a desconexão daqueles que habitam um outro mundo, o paraíso e o inferno, andaimes invisíveis construídos nestes quartos e corredores por onde ando.

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