14 de julho de 2009

Loucura

Nonada. Durante todos os anos em que convivemos as palavras de Guimarães Rosa eram meu maior alento: terceira margem do rio, estrampeação, ensombreceu, tresdobro, inventante. Com ele eu me sentia sempre aquém das palavras, ou seria além?
Enfim, estranheza, opacidade, incontáveis supervisões. Desistências de parte a parte, desculpas: nossos horários incompatíveis, “acho que não tenho mais o que trabalhar”, “me parece que seus objetivos já foram alcançados”, “não uso mais medicação”, “novos papéis, integração social”. De espontaneidade e criatividade não falávamos nunca, ele artista temia que a terapia comprometesse seu “fluxo criativo”, eu admiradora de sua arte, temia ainda mais.
Riobaldo, Diadorim e o Cão, juntos em uma só pessoa. Uma só pessoa? Raramente... Suas aventuras variavam tanto e com tanta freqüência que já na segunda sessão desistimos do clássico: “como foi sua semana?” Semanas, horas, dias, minutos se passavam de modo estranho. Às vezes homem, com nome masculino e roupas masculinas, às vezes uma androginia incômoda, nunca realmente feminina...
Diadorim mostrava-se com uma lentidão e nessas sessões, ou melhor, nesses trechos das sessões, porque tudo mudava muito rápido na vida e também comigo, eu tinha uma sensação de proximidade. Sentia-me menos incomodada, é verdade, mas não menos confusa. Diadorim falava de sentimentos muito duros e contava histórias de muitos abusos, no passado distante: a infância corrompida no interior, no passado próximo, as idas e vindas nas clínicas e no presente, os vizinhos, o filho, as irmãs. Perguntava-me como criar com ela, ela a mais concreta, a mais coerente, era também a menos acessível aos meus recursos terapêuticos...
Riobaldo. Riobaldo e suas rezas e suas súplicas e sentimentos fluidos, uma violência de punhais e uma delicadeza de terços e novenas. Riobaldo freqüentava com mais desenvoltura o tablado, dispunha-se a encenar... Um riacho, o descampado, uma faca encravada no peito do tio, dos primos. “sendo homem, posso destruir o que incomoda, posso vingar ela!” Riobaldo me dava medo, um medo assim triste porque com ele não havia diálogo, mas sua força parecia algo com que contar para dar um jeito aos menos na casa, conseguir negociar a licença do trabalho... As rezas, a Virgem, o terço, as salve-rainhas evocavam minha própria infância, as histórias do orfanato onde minha avó foi criada. “Deus esteja!”
Tinha muita ternura por Riobaldo nesses dias em que a reza ocupava a primeira metade da sessão, e era preciso pedir licença e perdão à Virgem, antes de se criar uma cena. Riobaldo representava às vezes uma esperança de vida, mas quase sempre me questionava se essa vida, “ao redor do buraco, na beira”, era mesmo uma alternativa mais saudável, ou mesmo possível. Porque como ele sempre me dizia, “ao redor do buraco, tudo é beira”
O Cão, o Demo, o Desinfeliz. “O diabo na rua, no meio do redemoinho...” era invisível, às vezes também indizível e as menções a ele eram sempre indiretas e confusas: “É o Cão que atenta, sabe doutora, e aí, não há meio, só há jeito de sair andando e fugir, sair de casa e andar, para não fazer o que ele quer...” “Mas, lá na rua, tem outros que não entende, e o Cão toma de conta.” “Melhor é não falar dessas coisas, tô aqui agora, podemos fazer uma oração?” “às vezes, ele toma forma... é a cara de meu tio, aquele.”
Nonada. Uma seção em que a mudança se mostrou mais tangível, ele falou da mãe. Nunca falava da mãe, assunto “por demais doloroso”. Falou da ausência da mãe, da raiva de sua morte precoce. “Seis anos é pouco para criar um filho”. A morte da mãe precipitara uma série de desventuras do pai, as bebedeiras, a violência, a mudança para a casa da avó. Ajudando a avó nas costuras, experimentava as roupas das freguesas. À noite, o tio muito mais velho, o violentava e ameaçava contar a todos que ele era “viadinho”. “Um dia, vi que eu era homem, mas também era mulher”.
Não era Riobaldo quando saía com os homens, era Diadorim. Diadorim me falou, então, que queria ser mãe e por isso tantos homens, tantas tentativas. Perguntei incrédula: mãe? E ele chorou e de um modo que não lembro bem, mas provavelmente não seguiu todos os passos da técnica, conseguimos entabular um diálogo entre Riobaldo e Diadorim. Ele disse que os homens eram maus e que melhor era esquecê-los. Ela disse que não podia ser, que ele precisava dela para estar com os homens sem ceder ao Cão. E num vai-e-vem em que apenas uma almofada vermelha distinguia os dois personagens, criou-se uma espécie de trégua. Riobaldo pôde admitir que estar com os homens nem sempre era ruim. Falou da dor de não ser o pai do filho que tivera com aquela mulher que não conseguia perdoar... Diadorim chorou por sua mãe, por nunca poder ser mãe, por todos os homens que nunca teria se tivesse apenas Riobaldo para viver.
Diadorim não morreu nesse dia e nem nunca, de todo. Mas o Cão sim. “O diabo não há! Existe é homem humano.” Riobaldo vinha mais vezes e mais vezes, sem Diadorim e quase não rezava mais, contava fatos. Fez um concurso, “salário para não ter que vender meus quadros se eu não quiser”, “pensão para meu filho ter algo bom de mim”. Falava do chefe, dos colegas no trabalho, da venda dos quadros, escrevia para “o menino em Minas”. Abstinência sexual acabou sendo uma saída, desistiu dos homens, fugia das mulheres. Sua reza era agora “rejeitar toda qualidade de prazer.”
Hoje, ele/ela tem um nome e uma história mais ou menos coerente. A casa funciona com tudo descartável e os vizinhos, “são bacanas, me conhecem já”. O trabalho, “contanto que não me perguntem, eu vou lá e faço. As mulheres, essas são as piores, sempre querendo ajudar...”
Em dias como hoje, e sempre que leio Guimarães Rosa, ouço sua voz metálica e muito baixa: “Quando sinto que posso me perder, ouço música e lembro que posso ser assim mesmo do meu jeito, aquela coisa dos meus direitos... A senhora me avisa quando não puder mais me ver? Será que um dia vou ter que contar tudo de outro jeito? Vai que não carece e eu morra antes... ” Travessia.

Um comentário:

  1. Fiquei impressionada com a riqueza do texto e com a infinita possibilidade de interpretação e entendimento. Obrigada por enriquecer meu dia.

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