14 de maio de 2009

Sonhos

Um tipo estranho e pouco convencional. Tinha algo de antigo e parecia não se ligar no nosso tempo. Disse que não era muito chegado a psicólogos e afins (com estas palavras), mas fazia uns anos (20? 30?) que tinha um mesmíssimo sonho.
O sonho, ao contrário de tantos outros que tivera, era repetitivo, igual, igual nos detalhes, em tudo. Ele abria uma porta que dava para um escuro. Quando acende a luz o sonho termina. O aprisionamento no sem fim das repetições o incomodava demais.
Seus filhos já tinham saído de casa. Seus netos já eram crescidos. Vivia na santa paz de deus com sua mulher em um casamento feito de... repetições. Mas era bom, confortável, doméstico, silencioso.
Nas narrativas das primeiras sessões, contou que já teve casos com outras mulheres nestes anos todos de casado. Trabalhou muitos anos viajando e isto possibilitou ter outros relacionamentos que ajudou a manter seu casamento vivo. Voltava para casa culpado e com flores, chocolate, uma blusinha. Ela adorava: talvez pressentisse a culpa, mas melhor isso do que um casamento tão sólido se desmanchando.
Eu pensava nele como um personagem de Nelson Rodrigues, tão conservador, tão cruel na sua sabedoria, tão lógico na sua loucura.
Mas doutor, e o sonho? Sonhei de novo...
Peço para que ele se veja no sonho e abra a porta, acenda a luz...
Porra, doutor, nada...
Parece que era cedo, ainda, para ele iluminar a sala.
Algum tempo depois, ao falar da sua adolescência, apareceu Cecília, a moça negra que morava no mesmo quarteirão. Ele se apaixonou por ela, de modo fulminante, aos catorze anos. Ela tinha treze, na época. Ele, branquinho, descendente de italianos. Ela, na verdade uma mulata ganhando formas, linda, de olhos verdes.
O romance foi um escândalo. E além da pele, havia uma certa diferença de classe que, segundo, ele encobria o racismo evidente dos pais. Diferença de classe parecia ser mais justificável do que o racismo.
Tudo isso foi esquecido, guardado em uma caixa. Mas a intensidade era tamanha que o sonho jamais deixou que ele esquecesse. Pensando bem, diz ele, adoro morenas, mulatas, negras, mas... me casei com uma branquinha.
O sonho desapareceu. É evidente que ela estaria na sala, mas ele não ousava acender a luz.
A história, no entanto, não acabou aí.
Voltou ao antigo bairro e começou, como quem não quer nada, a perguntar sobre Cecília. Ficou sabendo, através de um amigo do marido de uma prima distante de Cecília, que ela morava em Maringá, no interior do Paraná. E fez que fez que conseguiu o endereço dela por lá... Mas, sabia, ela era ainda casada, avó, morava em um bairro de classe média... Inventou uma viagem para Londrina, onde efetivamente morava uma irmã. Foi de carro e sozinho. Consultou a lista telefônica. Não, na época não havia ainda Google. E mesmo que tivesse, ele não saberia de sua existência. Não eram poucos os Pereira da lista... Ligou para todas as casas, encontrou outra Cecília... Mas não encontrou sua Cecília.
Queria saber dela, mas como ser mais desabrido, descarado e ser ainda mais direto com as pessoas que a conheciam?
Decidiu desistir e voltar.
Nos meses que antecederam o término de seu curto e intenso processo teve o sonho definitivo: ele era um mulato, desfilava, meio que invisível, na Mangueira, na ala das baianas. Todas negras, negras... Doces e carinhosas. E ele chorava na avenida e todos, todos aplaudiam de pé a escola, linda, verde e rosa. Imagina, logo eu que nunca gostei de Carnaval.

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