24 de maio de 2009

Religião

Lasciate ogni speranza, voi ch'intrate.

(Dante Alleguieri, Inferno, canto III, linha 9)

Vamos chamá-lo Dante, por motivos óbvios, e vamos chamá-la de Beatriz pelos mesmos motivos. Eles chegam mansamente ao consultório, são muito jovens ainda. Eles chegam mansos, mas suas histórias são violentas e me assustam. Assusto-me com suas dores e mais ainda com sua solidão. Ele apenas 19, ela já nos 24, mas muito jovens, jovens demais para conhecer o Inferno – por dentro. Conheciam o Inferno porque seus pais negociavam caminhos para o Céu.

Dante e Beatriz eram muito jovens, mas já muito experientes nas lides do Céu e do Inferno, mais do que nas da terra. Tendo crescido no "temor a Deus", criados "no seio da Igreja", educados para "o trabalho do Senhor" pouco restou para compreender as limitações das longas ausências dos pais, as liturgias dos cultos, a súbita mudança de status social, o marasmo de uma vida "de testemunho". Precisavam ser filhos de seus pais e tinham muita dificuldade em apenas ser, em descobrir quem eram e saíram pela vida esbarrando em vários círculos do Inferno.

Beatriz e Dante nunca se conheceram, pelo menos não que eu saiba. De Igrejas diferentes, talvez rivais, ou concorrentes, eu não saberia mais dizer... Viviam em mundos paralelos, unidos apenas nas minhas preocupações.

Dante, um menino, um rapaz, um homem, com comportamento muito diferente da expectativa de seus pais, estava satisfeito com os paraísos artificiais e dispensava ajuda. "Não preciso de terapia. Mas, gosto de conversar com gente mais velha, gosto de conversar com você. Eu não pareço minha idade, sabe? Minha namorada é bem mais velha, meus amigos são mais velhos. Acho que vamos nos entender." Ainda na nossa primeira conversa fez questão de me dizer que a prática religiosa de sua família não influenciava seu comportamento: "não incomoda, eles lá na deles, eu na minha. Eu é que não vou ser o menino modelo!" Na entrevista com sua mãe, lembrei-me de antigas figuras de Madonas que enfeitavam as paredes da casa de minha avó: uma mulher com um bebê no colo e a visão da morte nos olhos. Não sei para vocês, mas essa foi sempre a minha visão das madonas, mães que sabem cedo demais, que seus filhos foram dados por Deus para serem tirados de seus braços, muito cedo, cedo demais. "O Senhor fez em mim maravilhas, santo é o seu nome". A mãe de Dante parecia resignada com seu destino: "ele bateu no pai, mas foi só um descontrole, porque eles são muito parecidos, sabe? É coisa de menino... Se bem que ele não é mais um menino, já tá homem, eu sofri muito. Ele não compreende, têm coisas que o pai não pode concordar, ele enfrenta, ele perdeu a cabeça... Eu oro muito para essa fase passar... Mas um tratamento pode ser bom, ele precisa se acalmar um pouco mais, até comigo ele às vezes perde a paciência, mas nunca bateu não." Para Dante, sua mãe era "uma Santa" ou "uma boba". De todo modo, parecia lhe dar mais apoio, mas um apoio tênue: "Ela me entende, a gente conversa, mas ela não pode ser contra ele, o pai."

O pai, o pai de Dante era o próprio Dante, mais velho. O jeito de falar, de buscar aprovação. "A Dra. vai me entender, eu estou tentando compreender esse garoto, esperando que ele amadureça, mas está difícil. Não posso aceitar que ele parta para cima de mim, eu sou o pai. Bati nele porque precisava, ele não pode fazer o mesmo. Trouxe para cá porque conversar com uma pessoa mais preparada, que não é da família pode ajudá-lo a compreender as coisas. A mãe é muito boa, boa demais, não me deixa disciplinar como deveria, protege."

Recomendei uma sessão familiar, nunca era possível conciliar horários. Eles vieram, um de cada vez. Dante ficou, não por muito tempo. O pai, assim dizia a mãe, desculpando-se ao telefone, "ia mandar o cheque", "não é muito organizado com as contas, pode re-apresentar os cheques". Enfim, uma acidentada e longa negociação. Minha relação com Dante ressentia-se desses tropeços, ele se envergonhava de suas roupas e tênis caros e gastava um tempo tentando explicar/entender as prioridades do pai na administração do dinheiro da família, da Igreja. Alguns níveis do Inferno puderam ser apenas reconhecidos, vislumbramos o purgatório em algumas cenas, mas o Céu sempre ficava adiado. O mote de Dante era a transgressão, a transgressão que faria o pai ver, ver sua dor... Mas o pai não podia descer ao Inferno com Dante. Eventualmente, ele se foi. As dívidas ficaram como uma lembrança por muito tempo. Até que perdoei uma parte, para libertá-lo mais do que qualquer outra coisa.

Com Dante, estive muito perto de compreender o peso de ser o filho, o filho do pai que salva. Mas, ao contrário do Pai, com esse não havia nem a possibilidade de queixa: "Pai afasta de mim esse cálice!". O pai de Dante era surdo aos seus pedidos e Dante perdeu a fé, nele e no Pai. Sem fé, sentia-se só, restava-lhe apelar às mães eventuais e flertar com o outro, com o senhor das transgressões, esse sim, pródigo em lhe oferecer meios e modos de superar seus medos e sua solidão. Jovem, muito jovem, Dante vagava pelo deserto sem conseguir resistir às tentações.

Não pude ser o Virgílio deste Dante contemporâneo. Nos poucos meses em que ele esteve comigo, andamos por caminhos árduos e silvestres, talvez tenhamos visitado alguns lugares do Inferno, divisado o monte do Purgatório, mas não chegamos a vislumbrar um céu diferente daquele que ele encontrava nos seus paraísos artificiais. Anos depois, recentemente, tive notícias de Dante: conseguiu sair da casa dos pais e queria uma indicação para a irmã.

O inferno de Beatriz eram os outros. Homens que a enganam, oprimiam, abandonavam, abusavam e violentavam. Essa Beatriz, como a de Dante, devotava-se a salvar homens em selvas escuras. Nas sessões, muito falava dos "coitados" que a faziam sofrer, sempre explicando porque eram como eram, "a família é problemática", "trabalha demais", "as mulheres são uma tentação". Tudo que sofria, as infidelidades, os maus tratos, as práticas sexuais que contrariavam seus valores, os prejuízos financeiros, os sacrifícios para ser "magra", "bonita", "desejável" eram sempre justificados pelas limitações dos homens.

Beatriz se considerava, apesar de tudo, salva. Em alguns momentos, os piores, duvidava se poderia mesmo suportar os infortúnios e permanecer com eles até que se salvassem. Mas, passou-se muito tempo antes que Beatriz considerasse que a repetição das histórias, os finais quase trágicos, eram sinais de seu próprio sofrimento e não "fraqueza", "falta de fé".

Mesmo sem ter o título, Beatriz considerava-se uma pastora e procurava ajuda para ser uma pastora melhor, escolhia seus homens entre os mais difíceis, ovelhas desgarradas. Fiel como um cão, Beatriz dispunha-se a escalar as montanhas mais íngremes e aventurava-se nos vales mais profundos para trazê-los para o caminho da salvação. Contudo, eles nem eram ovelhas e nem queriam ser salvos e Beatriz sentia-se sempre fracassada na comparação com seus pais, esses sim, pastores eficientes. E as ausências dos pais, a convivência com tantas ovelhas desgarradas em todos os momentos de sua vida, a distância "do mundo" foram apenas pouco a pouco se apresentando como cenas que podiam contextualizar a repetição de seus insucessos amorosos.

A salvação, primeiro a dos outros, mais tarde, a sua própria foi o tema central de minha história com Beatriz. No início, estávamos no Céu e ela esperava que como Virgílio eu guiasse seus jovens perdidos pelo Inferno. A terapia individual foi um meio de tentar compreender o noivo que se recusava a vir para terapia de casal. Depois, um apoio para enfrentar o fim do noivado e, na seqüência, um recurso para compreender uma longa sucessão de tentativas. Curiosamente, o número de parceiros, a natureza precária dos compromissos não perturbava Beatriz. Considerava que o sexo era uma "linguagem para chegar aos homens" e não hesitava em usá-la quando considerava que seria um caminho para a salvação deles.

Sua relação com Deus, com sua família, era inabalável, eram igualmente bons e justos e não podiam ser nem associados às suas dificuldades. Seus percalços eram "artes do inimigo", seus homens estavam presos em "cadeias do Mal". Deus, a Igreja, seus pais eram modelos de virtudes aos quais pouco cabia pedir ou esperar, ela esperava despertar neles orgulho por seus atos de abnegação.

Foi nos embates com o demônio, nunca realmente personificado, nem no espaço dramático, que Beatriz formulou algumas novas perguntas que, lentamente, levaram-na a novas ações. Em uma cena fundamental percebeu sua resignação como vaidade, "salvá-los, a qualquer custo, me tornaria boa". Vendo que sua maior virtude aparente era, no fundo, um pecado e que as provações a que se submetia, de certo modo, eram prazeres, ficou muito chocada e iniciou sua mudança.

Foi muito difícil acompanhar Beatriz por seu caminho no Inferno com os homens. Difícil vê-la deixar-se abusar, humilhar, sem assumir o papel de vítima. Sua abnegação me incomodava e, muitas vezes, considerei fanatismo muitas de suas convicções e silenciosamente culpei seus pais, a sociedade, por seus infortúnios e esperei que ela assumisse sua condição de vítima. Com Beatriz vivenciei mais do que com qualquer outra pessoa, o poder do mártir, a arrogância de quem desempenha o papel de salvador e perdoa "os que não sabem o que fazem".

A cruz de Beatriz era seu ideal e descer dela custou, a nós duas, muito esforço e muito tempo. Na descida, muitos tropeços, interrupções, pausas. Encontrar um caminho para ser boa sem necessariamente ter que salvar os outros por seu próprio sofrimento foi como um Céu na Terra para Beatriz. Se não chegamos ao Paraíso, se não houve uma "transumanização", ao menos penetramos nós mesmas pela selva escura, uma odisséia feminina pelos círculos infernais.

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