24 de maio de 2009

Religião

Convide o Senhor para vir na próxima sessão!

- Olhei no espelho e vi que eu estava me transformando no demônio!

Assim, atolado na fala desesperada, o adolescente olha para o psicoterapeuta, na época, poucos anos mais velho que ele, e pede para que eu responda uma pergunta sem titubeio.

O demônio em questão estava inteiramente a serviço da culpa que o rapaz sentia quando a fantasia de ser homossexual atravessava seus pensamentos. Seus pais, pessoas doces e humildes, sabiam do sofrimento do filho e na sala oravam fervorosamente ao Senhor para que Ele, mais forte e poderoso que o Demônio, livrasse o filho de tamanha dor e vergonha de ser possuído por ele, instigando tais idéias. A Bíblia aberta sobre a mesa auxiliava na des-possesão.

Talvez não acreditando inteiramente no poder da oração ou não tendo fé o bastante em tudo isso (o que acarretava mais culpa nele, um talvez incrédulo) apela também para o poder questionável da Psicologia, não exatamente por sua escolha, mas por indicação de um médico. E eu deveria responder se tinha certeza da "cura total da homossexualidade".

A religião, de um modo ou de outro, atravessa todos os processos terapêuticos. Algumas vezes como questão do cotidiano e noutras como conflito residual. Com outros clientes como tema filosófico (Qual a importância da religião na vida de uma pessoa?), ou ainda como temor (Serei castigado por não ter uma religião?). Estes temas não são nada incomuns, ao contrário do que poderíamos supor. Surge como complicador quando a experiência religiosa está baseada em uma leitura fundamentalista e excessivamente sagrada da bíblia, das crenças, dos ensinamentos das autoridades. Quando surge como mais um aspecto a ser investigado e, como qualquer outro, disponível para a dessacralização é de fácil intervenção. Dessacralização não significa abandono da religião, mas uma compreensão mais madura desse e de qualquer outro assunto.

Não tenho duvida que a religião funciona, em um tanto de vezes, como válvula de escape (o tal ópio). Mas o nosso tempo oferece tantos outros pontos de fuga - idéia aqui utilizada como lugar de entorpecimento da realidade – que seria injusto imputar as religiões total responsabilidade por isso. Seria preciso nomear estes outros pontos de fuga. Ou melhor, é praticamente impossível nomeá-los já que praticamente tudo pode se assemelhar a uma fuga em uma sociedade de consumo extremado. E convenhamos: a realidade é tão cruel para os seres humanos que não precisamos ser tão sensíveis para compreender a busca religiosa.

Como mostra o documentário de Eduardo Coutinho, Santo Forte, o brasileiro tem uma religiosidade marcada pela urgência em resolver problemas econômicos, existenciais, de saúde, de cidadão desamparado. O sentimento como espectador, quando o filme termina, é como é possível sobreviver nesse país sem um santo muito forte? Não nos faltam carências: elas atravessam todas as relações mergulhadas em uma sociedade em convulsão.

Em pleno surto psicótico, uma professora, antes uma tímida mulher com origem no campo, se diz transfigurada em Nossa Senhora. Em certos momentos via a Virgem, mas em outros ela, uma simples professora, era a própria. E mais: estava operando milagres e o mais contundente deles, prova cabal dessa transformação, era o hímen que, segundo ela, estava sendo restaurado dia a dia pela graça da Virgem.

Como estagiário de Psicologia em um hospital (espírita) o caso me fascinava e apavorava. Nunca antes tinha visto um surto tão rico, intenso, colorido. A bem da verdade, nunca antes tinha visto alguém em surto. (Ou pensando bem, talvez tenha visto muitas vezes, sem nomear). A loucura, assim tão escancarada, tão institucionalizada e, ao mesmo tempo, tão enganadoramente livre teve uma efetiva participação na derrubada de minha arrogância juvenil.

E de novo estavam lá, a sexualidade e a culpa.

Como em um algum antigo melodrama de televisão, ela havia se apaixonado pelo filho de um homem, inimigo do pai, e perdido a virgindade com este rapaz mais ou menos de sua idade. O pai, quando ficou sabendo do ocorrido, morreu de desgosto. E, evidentemente, a família atribuiu toda a culpa à jovem transgressora.

Internada e totalmente imersa nas drogas lícitas oferecidas pelo hospital para conter o surto, ela vagava pelos corredores procurando seres que precisassem ajuda da Virgem. Eles deveriam existir para atenuar sua culpa arrasadora.

Em outra sala, sem qualquer imposição aos internos, os espíritas ofereciam ajuda para aqueles que procuravam "entendimento" e conforto para afugentar estas estranhezas invasoras. Os internos, confusos, tinham dificuldade em discriminar o que era doença e o que era um fenômeno sobrenatural, se a cura viria dos remédios ou dos "passes" ministrados pelos religiosos.

Nossa fragilidade humana é presa fácil, caçada pelas ideologias e crenças de toda ordem. Nem sempre conseguimos suportar uma realidade acachapante, dura, impositiva, de um imaginário incompreensível, de instituições legalistas, de culpas devastadoras. A religião apazigua, dando um conforto normatizador que não facilita o crescimento humano. E muito pelo contrário, surge repressiva, sutil ou escancaradamente, controladora dessa fragilidade.

Uma religião que nos acolha em nossa vulnerabilidade? Que fortaleça homens e mulheres no sentido de proporcionar-lhes autonomia? Que não estimule dependência e sim crescimento? Seria pedir demais?

As verdades absolutas se colidem com outras verdades absolutas de outras religiões. Deuses empreendem uma verdadeira batalha pela posse das almas na medida em que a revelação está evidentemente com aquele deus e aquela crença. Essa discussão é mais ou menos óbvia quando racionalmente pretendemos dar algum sentido a estas experiências, mas não quando os seres humanos necessitados precisam de ajuda.

Nenhum discurso racional proporciona tanto conforto quanto a crença na ajuda de um Deus todo poderoso quando uma doença nos toma, um filho morre, uma tragédia mata centenas de humanos.

Felizmente um psicodramatista não precisa explicar, interpretar. Ao facilitar que os clientes tomem papéis e encarnem seus deuses, o Senhor pode freqüentar as sessões e com ele discutir o drama de ser humano.

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