1 de maio de 2009

Pedofilia

Perdão, meu filho, eu não imaginava... Eu... Eu sei que não há perdão, mas tente entender: eu não sabia!
Você sabia, sim! Eu contei, eu contei mais de uma vez! Eu pedi sua ajuda, você não me ajudou! Você acreditava mais nela do que em mim! Eu não perdôo!!
Eu não podia acreditar! Eu confiava nela, eu não... Eu estava cega! Me perdoe, me perdoe..
Margot, uma mulher de 50 anos, procurara a psicoterapia há seis meses com um diagnóstico psiquiátrico de “transtorno dos impulsos”. Margot comprava, comprava além da conta, coisas supérfluas, jóias, flores, perfumes, com um dinheiro que não tinha. Estava endividada, mas não conseguia parar. Veio indicada pelo meu sócio que, há alguns anos, atendia seu filho. Margot já fizera outros, muitos, “acompanhamentos, inclusive com grandes nomes da Psicologia, no exterior”. Passamos as primeiras sessões discutindo meu currículo, ela dizia preciso ter certeza de que você é suficientemente preparada para confiar em você.
Nessa sessão, Margot estava no tablado mais uma vez pedindo perdão. Mais uma vez, eu estava no papel de seu filho de 20 anos. Mais uma vez, a cena terminava sem mudanças. Margot não conseguia encontrar um meio de ser perdoada. Talvez eu não conseguisse achar um meio de ajudá-la a se perdoar.
Margot, uma jovem européia, casara-se há 25 anos com um brasileiro que trabalhava para um organismo internacional. Moraram em muitos países, tiveram dois filhos. Margot não conseguira ter uma carreira, mas manteve-se sempre ativa: cursos, trabalhos como free-lance. Uma babá de confiança criara Fred e Lara.
Era essa confiança na babá que Fred não conseguia perdoar. Foi essa confiança cega que a impediu de ver, de sentir, de acreditar que a babá maltratava seus filhos, que a babá abusava sexualmente de Fred.
Foram anos, muitos anos. Margot notava que Fred era retraído, achava que era uma reação às mudanças de país e as brigas freqüentes dos pais, ao nascimento da irmã. Instruía a babá – “sempre tão amorosa” – a dormir no quarto dele, a ficar sempre por perto. Quando iniciou a escolarização, as professoras de Fred sugeriram acompanhamento psicológico, parecia muito inteligente, mas tinha muitas dificuldades de relacionamento e não desenhava. Algumas das muitas psicólogas aventaram a possibilidade de um abuso, Margot cogitara se teria sido algum colega na escola, algum empregado, jamais a babá de absoluta confiança. Passaram-se muitos anos até que no início da adolescência, em uma das raras folgas da babá completamente dedicada, sem família, sem namorado, Fred falou:
Mamãe, a Maria abusa de mim. Mamãe, Maria me faz fazer coisas com ela, coisas que eu não quero. Mãe, manda ela embora, por favor.
Menino, que coisa! Tá bem, você já está crescido para ter babá, mas ela me ajuda ainda com sua irmã. A Maria ama vocês dois, nós somos a família dela. Você tem que entender que ela ainda vê você como um bebê. Mas, eu vou falar com ela para parar com tantos cuidados com você.
Mamãe, não é isso. Ela é malvada, ela faz coisas ruins com a gente, com a Lara também. Mãe, manda ela embora.
Essa cena, Margot só encenou uma vez. Na seqüência, caiu em um choro convulsivo. Eu imaginava que seria mais uma cena inacabada, minha idéia de verticalização não havia funcionado. Margot interromperia mais uma vez a cena.
Em meio ao choro, falando em sua língua materna, Margot começou a falar sobre seu padrasto. Lembrou-se de como foi abusada por ele, de modo sutil: passadas de mão, colos pouco inocentes, nojento!
Lembrou-se que tentou falar com sua mãe, que ela achara que ela estava apenas jalouse. Na cena com sua mãe, Margot chorou, queixou-se do padrasto, mas sua mãe não pediu perdão.
Você já era grandinha, se protegeu sozinha, não foi? E afinal não aconteceu nada e depois eu me separei dele. Ele não era seu pai e homens são assim mesmo...
Margot nunca mais falou sobre o perdão do filho. Nas sessões seguintes, trabalhou muitas vezes sua relação com a mãe mulher esquisita, que tem muito dinheiro e não gasta. Que rouba saleiros, pimenteiros e até guardanapos – uma vergonha! - dos restaurantes. O dinheiro da mãe, acumulado no decurso de três casamentos e aplicado em papéis seguros, em moeda forte era com que ela contava para saldar suas dívidas.
Margot também trabalhou sua relação com o marido, todas as frustrações que o trabalho, o estilo de vida dele, fizeram-na passar. No final de um ano de psicoterapia, conseguiu realizar um plano de pagamento de suas dívidas, estava comprando menos e tendo menos culpa quando comprava. Saiu de férias. No início do ano seguinte, alegou que seu plano se saúde não pagaria mais sessões, não retornou.
Pouco tempo depois, eu soube que seu marido estava em estado terminal, uma doença fulminante. Nunca mais a vi.
Nos anos que decorreram, algumas vezes vi o filho de Margot na sala de espera ou saindo, ele também foi paciente na clínica onde trabalho. Um jovem muito bonito que nos últimos tempos usava ternos elegantes. Gosto de imaginar que Margot encontrou mesmo um meio para se perdoar e seguir em frente e que, de um modo ou de outro, seu filho também encontrou meios para crescer.

Um comentário:

  1. As coisas se repetem, né? Algumas nós criamos...

    abraço a vocês
    as crônicas estão muito gostosas de ler

    Andrea

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