29 de agosto de 2010

Este Blog tornou-se um livro

As nossas experiências, aqui neste Blog, nos animaram a reunir essas crônicas em um livro que foi lançado no próximo dia 05/09, em Águas de Lindóia, no XVII Congresso Brasileiro de Psicodrama.

O livro chama-se SEGREDOS e foi publicado em Brasília pela Editora LGE, com Apoio Cultural da FOCUS. Segue aqui uma prévia, o texto que inicia o livro:

APRESENTAÇÃO

“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer” (Mário Quintana)

Os textos que compõem esse livro devem ser entendidos como um jogo. E como todo o jogo é preciso entender as regras que estão na base de sua construção. O jogo que estabelecemos como autores teve a diversão como estímulo. Às vezes, como desabafo. Noutras, a simples construção (supostamente) literária.

Explicamos: somos psicoterapeutas e não escritores profissionais. Mas somos vorazes leitores de literatura e resolvemos ‘brincar’ com o material cotidiano de todos os clinicos. Como sabemos, psicólogos têm um código de ética compreensivamente severo no que diz respeito às informações trazidas pelos clientes. Estava, aí o obstáculo necessário para escrever: inventar, ficcionar os sentimentos do terapeuta se utilizando de um outro papel, o de escritor.

As crônicas, os contos mínimos ou não tão mínimos assim, respeitaram esse espírito: criar sobre as dores, a banalidade, o trágico, o bizarro do cotidiano, levando-se em conta a privilegiada posição de quem é sumariamente ‘invadido’ e detentor de segredos profissionais que não podem ser revelados.

Pois bem: os segredos podem ser travestidos, dissipados, esquecidos e, como a matéria dos sonhos, surgir como outra coisa, uma outra verdade, muitas vezes menos sofrida, outras vezes mais louca. Os segredos que aparecem em nossos textos são, a bem da verdade, dos escritores. Deles, de fato, a (di)versão.

Não é lugar comum dizer que qualquer interpretação dos fatos diz mais de quem interpreta do que dos fatos? Mas, mesmo aí, e sabendo disso, é possível também inventar segredos dos segredos, novas aparências, de outros personagens que assumam verdades estrangeiras. Como bem comentou Foucault:

“(...) me dou conta que nunca escrevi senão ficções. Não quero dizer com isso que esteja deixando de lado a verdade. Parece-me que existe a possibilidade de trabalhar a ficção, de induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção e de fazer de modo que o discurso de verdade suscite algo que ainda não existe”. (Michel Foucault)

Nesse jogo, trabalhamos com a matéria que constitui nossos sonhos, nossas vidas. Portanto, nada mais óbvio, nada mais exótico.

Devanir Merengué e Valéria Brito


4 de julho de 2010

Despedidas

Um rolo de papel se acumulava no chão. Eu sentava ali mesmo no tapete para ler as muitas páginas que o aparelho de fax havia produzido durante a noite. Foram vários dias, durante alguns meses. Stela havia se mudado para o Canadá com uma proposta de emprego “irrecusável”, as páginas escritas substituíam de maneira provisória, pouco ortodoxa e poética, suas sessões. Um desconforto físico para ler as palavras, garranchos mal reproduzidos em um papel enrolado, não raras vezes, incompreensíveis aguçava a sensação de que aquilo não era psicoterapia. Tentava me inspirar ou consolar com as experiências de Freud, lia suas cartas para tantos que procurou compreender à distância. Inútil. A sensação de desconforto permanecia, às vezes apenas amainada, por telefonemas em horários bem combinados e curtos em que proferia algumas obviedades, mais para dar à Stela o conforto de ser ouvida em sua própria língua do que com qualquer outro propósito. Encontrei um profissional que falava português na cidade em que ela estava e a indicação foi aceita com alguma reserva. “Comecei lá com ele, obrigada. Olha, obrigada mesmo! Sem você, não teria coragem de vir, não teria conseguido suportar os primeiros meses. Acho que não volto mais ao Brasil, se um dia vier ao Canadá me avise. Minha cidade é muito afastada das capitais, dificilmente, você viria até aqui, mas eu vou até onde você estiver.” Enquanto estive naquela consultório, enquanto aquele aparelho de fax funcionou, ao entrar na minha sala pela manhã, via uma ausência.

Era ainda um homem bonito aos 80. Vestia-se com simplicidade e elegância. Era delicado na voz e nos gestos formais. Mesmo em dias em que estava mais cansado e caminhar parecia um grande esforço, fazia questão de subir os degraus até minha sala. Em um desses dias, sugeri que utilizássemos a sala de um colega no térreo da casa, e foi a única vez que sua voz tornou-se ríspida: “Sou velho, portanto, faço questão de fazer tudo que ainda posso. Caso seja necessário, eu mesmo solicito, obrigada.” Meu desafio era interromper suas maravilhosas narrativas sobre sua participação nos maiores eventos do país, do mundo, na vida política e acadêmica da cidade que viu nascer, para propor reflexões para seu projeto de vida. Queria estreitar vínculos com o filho caçula, adolescente faminto de expectativas. Esforçava-se para aplainar as arestas com os filhos adultos, distantes de mágoas. Sua suavidade de gestos e lentidão de caminhada contrastavam com a urgência de mudança. Ao final do ano, “produtivo em muitos aspectos”, despedimo-nos com um abraço, o primeiro, e desejos mútuos de “Boas Festas!”. Ao retornar das férias, recebi um aviso da família comunicando seu falecimento, sereno, nos primeiros dias do ano. Ao ver no anúncio de jornal em que a família agradecia os pêsames, os nomes dos filhos unidos, dispostos na sequência em que ele os descrevia, senti muitas coisas, sobretudo, gratidão. Sim, fizemos tudo que ainda podíamos.

Um dia, Roberto sumiu, sem aviso. Não consegui associar sua saída a nada. Fiquei um pouco preocupada, Roberto era muito jovem, tinha uma vida bem difícil, estava muito frágil emocionalmente. Discuti o caso em supervisão. “Psicoterapeutas não perseguem seus pacientes.” “Não tem psicoterapia compulsória.” “Às vezes, o paciente não se despede para manter o vínculo.” “É preciso acostumar-se às várias maneiras que os pacientes têm de se despedir.” “Mas, é preciso confiar na sua intuição. Se está preocupada, ligue, mas apenas uma vez. Lembre-se, propósito é ajudá-lo, não é aplacar sua ansiedade.” Roberto não atendeu ao telefone. Liguei algumas outras vezes, esqueci. Passaram-se muitos anos, nunca soube o que aconteceu com ele.