tag:blogger.com,1999:blog-23111329066022004032024-03-05T06:35:20.417-03:00Histórias da ClínicaCrônicas espontâneas
sobre Psicoterapia e Psicodrama
Nesse espaço compartilhamos a idéia de produzir ficção a partir da experiência clínica.
Intencionamos pesquisar os limites e possibilidades da relação psicoterápica preservando a confidencialidade da relação terapêutica.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.comBlogger38125tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-76523127342609509652010-08-29T12:36:00.008-03:002010-10-21T14:34:02.196-02:00Este Blog tornou-se um livro<div style="text-align: left;"><span class="Apple-tab-span" style="white-space:pre"> </span>As nossas experiências, aqui neste Blog, nos animaram a reunir essas crônicas em um livro que foi lançado no próximo dia 05/09, em Águas de Lindóia, no XVII Congresso Brasileiro de Psicodrama.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><span class="Apple-tab-span" style="white-space:pre"> </span>O livro chama-se SEGREDOS e foi publicado em Brasília pela Editora LGE, com Apoio Cultural da FOCUS. Segue aqui uma prévia, o texto que inicia o livro:</div><div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><p class="MsoNormal" align="center" style="text-align:center"><b style="mso-bidi-font-weight: normal">APRESENTAÇÃO<o:p></o:p></b></p></div><div><p class="MsoNormal" align="right" style="text-align:right"><i><span class="Apple-style-span" style="font-size:small;">“A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer”</span><span><span class="Apple-style-span" style="font-size:small;"> </span></span></i><span class="Apple-style-span" style="font-size:small;">(Mário Quintana)</span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><i style="mso-bidi-font-style:normal"><o:p> </o:p></i>Os textos que compõem esse livro devem ser entendidos como um jogo. E como todo o jogo é preciso entender as regras que estão na base de sua construção. O jogo que estabelecemos como autores teve a diversão como estímulo. Às vezes, como desabafo. Noutras, a simples construção (supostamente) literária.</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p>Explicamos: somos psicoterapeutas e não escritores profissionais. Mas somos vorazes leitores de literatura e resolvemos ‘brincar’ com o material cotidiano de todos os clinicos. Como sabemos, psicólogos têm um código de ética compreensivamente severo no que diz respeito às informações trazidas pelos clientes. Estava, aí o obstáculo necessário para escrever: inventar, ficcionar os sentimentos do terapeuta se utilizando de um outro papel, o de escritor.</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p>As crônicas, os contos mínimos ou não tão mínimos assim, respeitaram esse espírito: criar sobre as dores, a banalidade, o trágico, o bizarro do cotidiano, levando-se em conta a privilegiada posição de quem é sumariamente ‘invadido’ e detentor de segredos profissionais que não podem ser revelados.</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p>Pois bem: os segredos podem ser travestidos, dissipados, esquecidos e, como a matéria dos sonhos, surgir como outra coisa, uma outra verdade, muitas vezes menos sofrida, outras vezes mais louca. Os segredos que aparecem em nossos textos são, a bem da verdade, dos escritores. Deles, de fato, a (di)versão.</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p>Não é lugar comum dizer que qualquer interpretação dos fatos <i style="mso-bidi-font-style:normal">diz mais de quem</i> <i style="mso-bidi-font-style:normal">interpreta</i> do que dos fatos? Mas, mesmo aí, e sabendo disso, é possível também inventar segredos dos segredos, novas aparências, de outros personagens que assumam verdades estrangeiras. Como bem comentou Foucault:</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p><i style="mso-bidi-font-style: normal">“(...) me dou conta que nunca escrevi senão ficções. Não quero dizer com isso que esteja deixando de lado a verdade. Parece-me que existe a possibilidade de trabalhar a ficção, de induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção e de fazer de modo que o discurso de verdade suscite algo que ainda não existe”.</i> (Michel Foucault)</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p>Nesse jogo, trabalhamos com a matéria que constitui nossos sonhos, nossas vidas. Portanto, nada mais óbvio, nada mais exótico.</p> <p class="MsoNormal" style="text-align:justify"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal" align="right" style="text-align:right">Devanir Merengué e Valéria Brito</p><p class="MsoNormal" align="right" style="text-align: left;"><br /></p></div></div>Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-6776504311051543412010-07-04T12:26:00.004-03:002010-07-04T12:33:47.766-03:00Despedidas<p class="MsoNormal">Um rolo de papel se acumulava no chão. Eu sentava ali mesmo no tapete para ler as muitas páginas que o aparelho de fax havia produzido durante a noite. Foram vários dias, durante alguns meses. Stela havia se mudado para o Canadá com uma proposta de emprego “irrecusável”, as páginas escritas substituíam de maneira provisória, pouco ortodoxa e poética, suas sessões. Um desconforto físico para ler as palavras, garranchos mal reproduzidos em um papel enrolado, não raras vezes, incompreensíveis aguçava a sensação de que aquilo não era psicoterapia. Tentava me inspirar ou consolar com as experiências de Freud, lia suas cartas para tantos que procurou compreender à distância. Inútil. A sensação de desconforto permanecia, às vezes apenas amainada, por telefonemas em horários bem combinados e curtos em que proferia algumas obviedades, mais para dar à Stela o conforto de ser ouvida em sua própria língua do que com qualquer outro propósito. Encontrei um profissional que falava português na cidade em que ela estava e a indicação foi aceita com alguma reserva. “Comecei lá com ele, obrigada. Olha, obrigada mesmo! Sem você, não teria coragem de vir, não teria conseguido suportar os primeiros meses. Acho que não volto mais ao Brasil, se um dia vier ao Canadá me avise. Minha cidade é muito afastada das capitais, dificilmente, você viria até aqui, mas eu vou até onde você estiver.” Enquanto estive naquela consultório, enquanto aquele aparelho de fax funcionou, ao entrar na minha sala pela manhã, via uma ausência.</p> <p class="MsoNormal">Era ainda um homem bonito aos 80. Vestia-se com simplicidade e elegância. Era delicado na voz e nos gestos formais. Mesmo em dias em que estava mais cansado e caminhar parecia um grande esforço, fazia questão de subir os degraus até minha sala. Em um desses dias, sugeri que utilizássemos a sala de um colega no térreo da casa, e foi a única vez que sua voz tornou-se ríspida: “Sou velho, portanto, faço questão de fazer tudo que ainda posso. Caso seja necessário, eu mesmo solicito, obrigada.” Meu desafio era interromper suas maravilhosas narrativas sobre sua participação nos maiores eventos do país, do mundo, na vida política e acadêmica da cidade que viu nascer, para propor reflexões para seu projeto de vida. Queria estreitar vínculos com o filho caçula, adolescente faminto de expectativas. Esforçava-se para aplainar as arestas com os filhos adultos, distantes de mágoas. Sua suavidade de gestos e lentidão de caminhada contrastavam com a urgência de mudança. Ao final do ano, “produtivo em muitos aspectos”, despedimo-nos com um abraço, o primeiro, e desejos mútuos de “Boas Festas!”. Ao retornar das férias, recebi um aviso da família comunicando seu falecimento, sereno, nos primeiros dias do ano. Ao ver no anúncio de jornal em que a família agradecia os pêsames, os nomes dos filhos unidos, dispostos na sequência em que ele os descrevia, senti muitas coisas, sobretudo, gratidão. Sim, fizemos tudo que ainda podíamos.</p> <p class="MsoNormal">Um dia, Roberto sumiu, sem aviso. Não consegui associar sua saída a nada. Fiquei um pouco preocupada, Roberto era muito jovem, tinha uma vida bem difícil, estava muito frágil emocionalmente. Discuti o caso em supervisão. “Psicoterapeutas não perseguem seus pacientes.” “Não tem psicoterapia compulsória.” “Às vezes, o paciente não se despede para manter o vínculo.” “É preciso acostumar-se às várias maneiras que os pacientes têm de se despedir.” “Mas, é preciso confiar na sua intuição. Se está preocupada, ligue, mas apenas uma vez. Lembre-se, propósito é ajudá-lo, não é aplacar sua ansiedade.” Roberto não atendeu ao telefone. Liguei algumas outras vezes, esqueci. Passaram-se muitos anos, nunca soube o que aconteceu com ele.</p>Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-18797846710981113662010-06-05T11:16:00.001-03:002010-06-05T11:18:02.188-03:00Aposentadoria<span class="Apple-style-span" style=" border-collapse: collapse; color: rgb(51, 51, 51); font-family:arial, sans-serif;font-size:13px;"><div><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Passou a chave na porta e pela última vez, apagou a luz.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Em janeiro, depois das férias de verão, viria o outro terapeuta, um jovem de 27 anos que alugara o imóvel.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Como ouvira de tantos obsessivos atendidos nos últimos 35 anos, sempre dispostos a verificar se fecharam efetivamente a porta, voltou e mais uma vez, empurrou para baixo a maçaneta. Sim, fechara.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Caminhava com alguma dificuldade culpando sempre algum osso que anunciava o desejo de não se mexer.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">De tanto ouvir, aprendeu algo dos humanos. De quase não falar, aprendeu muito de si próprio.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">E lá se foram milhares de adultérios, de amores proibidos, de golpes baixos, de enterros nunca acontecidos. Tantas dores, tanta solidão, tantas pílulas...</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Enquanto liga o carro para ir embora, sempre as 21 horas, pela ultima vez pensa que o ser humano merecia um lugar melhor, outros seres humanos melhores. Sabe que fala de algo - o ser humano - como uma entidade abstrata. Logo se corrige: preferiu sempre falar da condição humana, essa sim, execrável.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Vai sem nenhuma saudade, sem nenhum alivio.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Em qual outra profissão poderia ter aprendido tanto sobre a humanidade?</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Talvez não quisesse ter sabido tanto... mas, agora era tarde demais e nada poderia ser feito.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Olha no espelho tantas rugas, tanto cansaço... Ri para si e pensa que já foi um homem muito bonito.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">Mas, a juventude volta quando pensa que, no domingo, parte com a mulher amada para um prometido paraíso caribenho.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">E fingirá ser um turista qualquer.</span></span></p><p class="MsoNormal" style="margin-top: 0cm; margin-right: 0cm; margin-bottom: 0pt; margin-left: 0cm; "><span style="font-family:Times New Roman;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: medium;">De agora até para sempre.</span></span></p></span></div></span>Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-29162469183381983162010-05-30T23:04:00.005-03:002010-05-31T08:52:04.783-03:00Supervisão"O que é um supervisor, mamãe?"<div>(a mãe, saindo do carro apressada, olha para a criança. No meio sorriso, um misto de orgulho pela pergunta inteligente e apreensão. Como explicar isso para um menino de 4 anos?)</div><div>"Ah, eu sei! Ele tem uma Super Visão, né? É como o super-homem!"</div><div><br /></div><div>Sempre que contava essa história para meus supervionandos, me lembrava dele. Com um misto de doçura, tristeza, saudade, admiração...</div><div><br /></div><div>Não, ele não era um super-homem, ou talvez fosse. Era super engraçado e tinha mesmo uma super visão. As sessões de supervisão eram sempre animadas, contava sempre as mesmas anedotas, mas eram sempre engraçadas. As observações sobre os casos não eram particularmente consistentes em termos teóricos e, muitas vezes, os nomes das técnicas eram trocados. Mas, sua experiência como psicoterapeuta era vasta, intensa. Vestia-se sempre de branco, hábito incomum em psiquiatras, parecia um pai-de-santo. Nas aulas, aprendia a ser psicodramatista, com ele aprendia a ser psicoterapeuta. Aprendi como me valer dos conceitos para colocar em prática a filosofia do criador do Psicodrama. Meu supervisor ensinou-me que a grande técnica era a disponibilidade verdadeira para o encontro com as pessoas e suas dores, nas suas variadas formas.</div><div><br /></div><div>Era um super-homem. Super consciente de sua atividade como psicoterapeuta, uma atividade profissional. "É o seu trabalho, estudamos muito e vamos continuar estudando para realizá-lo bem. Como supervisor, estou ensinando 'o pulo do gato', tenho que cobrar mais que os outros." Me ensinou a pagar e a cobrar pelos serviços. Me incentivou a abraçar a carreira pública como modo de "fazer uma distribuição de renda justa: quem pode pagar paga bem, quem não pode, não paga nada."</div><div><br /></div><div>Era apenas um homem. Ironicamente, não usou seus conhecimentos para si mesmo. Eu nunca soube ao certo o que aconteceu. Eu fazia supervisão com outra pessoa, não nos víamos há alguns anos. Pelo que me contaram, estava deprimido, seriamente. Parece que consultou um colega de outra cidade, os colegas de sua geração mencionaram uma crise familiar, nós seus alunos, não soubemos de quase nada.</div><div>Enforcou-se, com uma corda sintética presa à maçaneta do consultório.</div><div><br /></div><div>"Um supervisor, meu filho, nos ensina muitas coisas. O meu primeiro supervisor me ensinou que ninguém vê tudo."</div>Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-1937077222355119702010-05-25T08:49:00.002-03:002010-05-25T08:52:47.467-03:00PROFISSÃOOlhava meu filho com a namorada pelo reflexo da tela do computador.<br />O fato é: ele é uma sombra, um rascunho, um projeto. Na tela, esse esboço aparecia nuançado, sem a namorada, que ria e ria.<br />Ele tentava, ou não, sair da adolescência. Eu esperava o dia de dizer: "esse é meu filho". Se possível com um ponto de interrogação. Como era possível ele ser assim, tão diferente de mim?<br />A beleza absurda lá estava, de alguma genética perdida, já que nem eu, nem a mãe somos seres dotados de qualquer estética diferenciada. Aliás, as duas famílias são absolutamente comuns. Ele não é especialmente inteligente, mas estranhamente arguto. O mais estranho, entretanto, é a capacidade de se desligar da realidade. Sempre voando, voando em mundos muito raramente comunicados para os pais.<br />Lia sobre civilizações antigas, sobre cenários e espécies da pré-história, cidades góticas... E sobre astronomia, astrologia, seitas ocultas.<br />Eu e a mãe dele, juntos, falamos sobre o "onde foi que erramos?"<br />Perguntamos-nos sempre se "isso" poderia desaguar em alguma profissão...Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-56008011875249727822010-05-23T19:17:00.001-03:002010-05-24T09:19:14.416-03:00ELEMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM MASTURBADOREle tinha a receita: controles e seduções. A sexualidade deveria ser aludida, jamais explicitada. Ou seja, ela não deveria ser nunca diretamente anunciada, mas aparecer sutilmente nas estrelinhas, nos risinhos, nos não-ditos. Mas também na negação do desejo, nos olhares camuflados.<br /><br />Mais que mistério. Verdadeiro elogio às coisas que toda criança não deve saber, nem deve querer saber. E, sim, deve saber que existem na inacessibilidade. De fora. E aí, gozar, no escuro, no obscuro, nas penumbras... Sem falar, sem gemer porque aí já ultrapassa o desejável. E limpar sempre toda a porra, cuidadosamente. As meninas são mais limpas...<br /><br />Ele tinha a receita e sabia do que estava falando. Fora seminarista e treinou muito e muito os rituais da sexualidade. Pernas, coxas, traseiros... Tudo precisa ser imaginado, contemplado longamente. E sonhar com sonhos, cores das carnes e de pelos dentro dos uniformes.<br /><br />Nunca se casou. Jamais encontraria uma mulher que pudesse dar conta de tantos rituais.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-68297635134274852162010-05-23T19:15:00.000-03:002010-05-23T19:16:30.356-03:00SER OU NÃO SEREu sou a circunstância. Eu sou o meu trabalho. Eu sou o meu casamento. Eu sou o livro que leio no momento. Eu sou a minha casa. Eu sou os meus filhos. Eu sou qualquer coisa que me interesse. <br />Ou eu não sou.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-53695530304966326492010-05-02T12:38:00.006-03:002010-05-02T13:38:05.901-03:00CriançasO pai era médico, a mãe pianista. Marina sofria. Sofria com a ausência do pai, com a frieza com que ele a cumprimentava passando a mão nos seus cabelos louros e dizendo com voz infantil: "Como você é linda!" Sofria com a presença do irmão mais novo que roubava toda a atenção da mãe, que não era muita depois dos concertos, gravações, aulas.<br /><br />Marina sofria e ninguém notava, linda, loura, rica, inteligente e gentil, todos a achavam maravilhosa. Todos os adultos. As outras crianças, não. As meninas, entre enciumadas e invejosas, a chamavam de "metida". Os meninos, entre desejosos e temerosos, "nem olhavam" para ela.<br /><br />Marina tinha pesadelos, terrores noturnos. Marina não se lembrava bem dos sonhos, mas seus gritos "acordavam a casa toda" e preocupavam a babá que "levava um tempão" para acalmá-la.<br /><br />Marina tinha oito anos quando nos conhecemos. Seu pai, que já havia feito psicoterapia, a trouxe na primeira vez "para ela ter alguém preparado para conversar". Sua mãe, depois de muita insistência, apareceu um dia ao final da sessão e disse rapidamente, "Não concordo, acho uma bobagem, pesadelo é coisa normal. Mas o pai quer e ela me disse que gosta. Como ela não tem outra atividade nesse dia à tarde, não me importo. A babá traz."<br /><br />Marina era muito independente. Decidia sobre suas roupas, sua alimentação. Decidia sobre suas atividades: violino, natação, inglês. Trazia os cheques e levava os recibos. "A Vilma é legal, mas ela não sabe direito certas coisas e se der alguma coisa errada, eu não quero que mesus pais briguem com ela."<br /><br />Marina desenhava muito. Flores, flores, flores. Marina conTava histórias e gostava de usar fantasias nas dramatizações. Em pouco tempo, não tinha mais pesadelos. Mas, começou a "desobedecer", "fazer birra", "brigar com o irmão". O pai e a mãe apareceram, juntos, preocupados. "Ela está pior!" Não tinham disponibilidade para compreender o sofrimento de Marina. "Ela tem tudo." Não tinham disponibilidade para estar mais perto de Marina. "Somos muito ocupados!!". Entendiam meu trabalho. "Sabemos que a terapia provoca sentimentos, mas não temos como cuidar disso. Será que não é o caso de uma escola em período integral?"<br /><br />Marina foi estudar numa escola bilíngue, de período integral. Fez novos amigos, entrou para um time de futebol. "Não é muito feminino, mas ela gosta e ficou bem mais calma." Não havia celulares naquela época, Marina pediu o número do meu bip: "Às vezes, quero contar umas coisas para você e se espero a sessão, esqueço."<br /><br />Marina me ligou em um sábado à noite. "Estou na casa da minha amiga e não acho meus pais e é folga da babá. Você pode vir me buscar?" Encontrei o pai, ele mandou um táxi, Marina dormiu na casa da avó. Marina me ligou no domingo pela manhã. "Dormi na casa da minha amiga e minha mãe até agora não veio me buscar. Eles vão sair, o que eu faço?" Encontrei a avó, ela não sabia onde estavam os pais e não podia ir, mandou o motorista. Marina me convidou para seu jogo de futebol. "Meu pai disse que vai, mas já sei que não vai. Minha mãe não gosta. Queria apresentar você para minha professora."<br /><br />Conversei com os pais de Marina. Eles se explicaram sobre suas dificuldades em conciliar atividades. Me perguntaram se eu não poderia cobrar como uma sessão e atender aos pedidos dela. Eles não entendiam meu trabalho. "Nós somos muito ocupados, ela se sente sozinha e gosta de você. Terapeuta de criança é meio como uma babá ou uma professora, não?"<br /><br />Marina ficou mais uns poucos meses. Sua mãe descobriu que seu pai tinha "várias amantes", separarou-se. Marina mudou-se com a mãe e o irmão para o exterior. "Fica com meus desenhos, para você lembrar de mim."<br />Inspirada por uma de minhas supervisoras, queria ser uma psicodramatista que atendia pessoas de todas as idades. Depois que tive filhos, parei de atender crianças.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-43314497815030900262010-04-17T11:40:00.001-03:002010-04-17T11:41:27.660-03:00DestinoI ATO<br /><br />Nossa família é sólida.<br />Pudera.<br />É constituída por engenheiros e engenheiras.<br />Explico: meu avô é dono de uma empresa de construção, a Constrular.<br />Minha avó foi professora.<br />Meus tios e minhas tias são engenheiros. Todos.<br />Meu pai, claro, é engenheiro.<br />Não, não. Não pense você que alguém trabalha contrariado.<br />Todos têm - como dizem?- vocação e talento.<br />Você acha que, aos 17 anos, eu consegui escapar?<br />Não, claro, que não.<br /><br /><br />II ATO<br /><br />Não dormi, de novo está noite.<br />Insônia ou sonhos com cálculos.<br />Provas e listas de exercícios.<br />Em todos, tiro zero.<br /><br /><br />EPÍLOGO<br /><br />Mandei um envelope para o meu pai.<br />Dentro dele, o diploma e um bilhete.<br />Algo tipo assim, fui!!<br />Peguei um ônibus para o nordeste.<br />Acho que para sempre.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-90645071013016501252010-04-17T11:30:00.000-03:002010-04-17T11:45:30.074-03:00FelicidadeNão é que não gostasse propriamente da decoração exagerada e quase sempre de gosto colonizado. Ou do clima de compras compulsivas, de confraternizações compulsórias. O que mais incomodava era a tal felicidade: Feliz Natal, Feliz Ano Novo, Feliz Aniversário...<br /><br />- Que coisa irritante! Como assim feliz isso, feliz aquilo?! Quem pode ser feliz com tanta tristeza e miséria nesse mundo?<br /><br />Balançou a cabeça afirmativamente como sempre fazia quando ele tentava esboçar alguma revolta, eram tão poucas as situações em que a agressividade, tão grande quanto cuidadosamente evitada, se deixava entrever que a terapeuta achava aceitável expressar uma concordância leve.<br /><br />Mas, ele reagiu inesperadamente:<br />- Por que você faz de conta que concorda?! VOCÊ NÃO CONCORDA! Você já me desejou Feliz Aniversário e tem um cartaz bem grande lá embaixo desejando FELIZ NATAL!<br /><br />Por um lapso de tempo incalculável - a natureza do tempo nesses momentos é muito mutante, às vezes intangível, às vezes mais dura que o concreto armado. Por um lapso que pareceu infindável para ele, ela considerou a pergunta. Será que acreditava na felicidade, essa das frases feitas que usamos nas festas?<br /><br />- Sim, Pedro, eu acredito em felicidade, como acredito em amor, em justiça, em...<br />-AH, QUE MERDA! NÃO ME ENROLE! Você fica feliz no Natal? No Ano Novo? Nos aniversários?<br />- Às vezes, depende...<br />- Então, você fica ou ficou, então, não precisa acreditar, você conhece essas felicidades.<br />-Você não?<br />- Não, NÂO, não... Você sabe que não. Felicidade que eu saiba é um dia sem medo. Não me lembro de um dia em que não senti medo. Há momentos, horas seguidas, às vezes. E até dias, mas com a medicação. E aí não é um dia sem medo é um dia com medo de ter que tomar o remédio para sempre. Desde que me entendo como gente tenho medo, medo, medo. Como se pode ser feliz com medo?<br />- A felicidade para você seria não ter medo?<br />- Para mim, não, para todo mundo! As pessoas quando estão felizes não têm medo de morrer ou de qualquer outra coisa! AH, você sabe!<br />- Não, para mim, é diferente. Eu já fui feliz em momentos em que tive muito medo, medo de morrer também.<br />-Você já teve medo de morrer?! Você?!<br /><br />Por um lapso de tempo incalculável – a natureza do tempo nesses momentos é muito plástica, às vezes infinita, às vezes mais breve que um segundo. Por um lapso que pareceu quase palpável para ele, ela falou.<br /><br />- Sim, Pedro, muitas vezes! Eu tenho medo, medo de muitas coisas! Da morte também, mas mais ainda da vida, de viver sem sentido, de me perder em devaneios enquanto os prazeres se esvaem. Tenho medo por mim, pelos que amo. Por você também.<br /><br />Silêncio. Ele abaixou os olhos, não conseguia chorar há muitos anos, pensou que essa seria o momento perfeito, mas o momento passou. Sentiu que ela se importava mesmo com ele, escondeu um sorriso. Silêncio.<br /><br />Silêncio. Ela lembrou-se, com gratidão, de sua própria terapia, de uma sessão específica, há muitos anos. Sua terapeuta contou-lhe como se sentia com a proximidade da aposentadoria. Balançou a cabeça afirmativamente. Silêncio.<br /><br />Por muito tempo, muitas sessões, lembravam-se desse lapso de intimidade, um momento frágil e poderoso. Silêncios como esse primeiro, uma felicidade delicada.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-36501027426785742792010-04-17T11:00:00.000-03:002010-04-17T11:47:01.716-03:00AmoreternoAmar é ter fome na mesmíssima hora e um cartão de visitas com os dois nomes juntinhos, mesmo que de profissões diferentes. Todos devem saber os nomes dos amantes e quanto eles se amam. Amar é contar tudo para o outro, mas-tudo-mesmo.<br />Amar é fusão: se fundir cada vez mais e mais e mais fazendo desaparecerodesejo do individuodemodoquenadanemninguémseintrometanesseamorlindolindoquefazpessoasseremnadanada.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-62063941083661792382010-03-14T19:51:00.003-03:002010-03-14T19:57:35.020-03:00NósDan, Fa e Bia formavam um trio. Bia morava sozinha e conheceu Fa numa festa, foram juntos para o apartamento dela já na primeira noite. Três meses depois, decidiram morar juntos. Dan era amigo de Fa, quer dizer, colega de curso na Universidade. Depois de formados, se viam em festas e shows e se cumprimentavam de longe. Em um desses encontros, Fa estava com Bia e ela pediu que a apresentasse. Foi instantâneo, conversaram os três pela noite afora, terminaram dividindo a mesma cama na casa de Bia e Fa.<br /><br />Antes de dois meses, Dan saiu da casa em que vivia com a namorada há quase três anos e foi morar com Bia e Fa. Estavam os três juntos há uns sete meses e tudo corria bem, dividiam tarefas, dividiam o orçamento, mas o apartamento era pequeno. Os três estavam bem no trabalho e resolveram mudar-se para uma casa maior, aí começaram os problemas. Fa queria um quarto de casal com Bia, Bia queria um quarto para cada um, Dan nem queria ir para uma casa, detestava tarefas domésticas e temia que aumentassem. Pensavam também em ter um filho...<br /><br />Eu ouvia a história estarrecida. Recebera um telefonema marcando uma sessão de família e lá apareceram os três e antes que pudesse esboçar alguma pergunta, contaram-me os fatos com detalhes, um complementando o outro e com uma naturalidade impressionante. Desisti das perguntas e comentei meu espanto. Eles riram e me contaram que o colega que os indicou disse que poderiam me procurar despreocupados porque eu “não me chocaria com nada”. Expliquei que de fato não estava chocada, estava confusa. Eles eram dois casais ou um trio? Explicaram que eram um trio, Bia era a mulher dos dois, Fa e Dan eram amigos, não havia nada de sexual entre eles porque Fa era lésbica. Ah...<br /><br />Vieram a umas três sessões e dramatizamos algumas possibilidades de solução para a divisão de espaço que, claro, era uma divisão de poder. Optaram por um quarto para cada um e uma faxineira. Resolveram deixar para pensar no filho mais tarde porque enquanto faziam terapia, Fa que seria pessoa a engravidar, ingressou num programa de pós-graduação. Os apelidos andróginos contrastando com as aparências tão tipicamente masculinas e femininas, o bom humor para tratar das situações de ciúme, a organização dos pares para se encontrar com privacidade – até já haviam dormido juntos, mas não havia sexo a três, tudo me surpreendeu nessa família. Soube que continuam juntos, não sei se tiveram filhos.<br /><br />Famílias que não seguem os padrões ditos normais de composição e funcionamento, muitas vezes, procuram o espaço dramático como um espaço de reconhecimento. Alijadas das rotinas mais comuns de interação entre famílias, às vezes circulando com liberdade apenas em grupos restritos, essas famílias encontram na psicoterapia um lugar de confirmação e acolhimento. Com elas, trata-se menos de encontrar os pontos de conflito, de identificar dinâmicas repetitivas e superá-las e mais de validar a legitimidade de sua busca pelo encontro, a despeito das peculiaridades de suas escolhas.<br /><br />O pai deixou um recado que queria marcar um horário, mas não poderia ser com a secretária, queria falar só comigo. Liguei e ele me explicou que era o pai de uma “família gay” e queria marcar um horário. Disse que não havia problema. “Achei melhor avisar logo, não sei como são essas coisas.” Perguntei quantos eram. “Somos cinco, incluindo o genro”. Combinamos um horário. “É mais para ver se precisamos mesmo, tenho dúvidas.”<br /><br />Na hora marcada, estavam os cinco me aguardando, não mostravam nada de especial. Pai, mãe, dois filhos, um genro. Os pais me contaram que se conheceram muitos jovens, no interior, casaram-se e tiveram os dois filhos com apenas um ano de diferença. As crianças ainda eram pequenas quando se deram conta que tinham “desejo por pessoas do mesmo sexo”. Viveram histórias em paralelo ao casamento até que encontraram parceiros fixos, “primeiro eu namorei firme com um colega de trabalho, depois ela saiu de casa para morar com a namorada dela”. “Contamos às crianças desde sempre e elas acho que não tiveram problemas com isso.”<br /><br />O filho interrompeu para dizer que tinha tido sim muitos problemas, mas superou e não foi fácil “assumir a sexualidade”. Contou que namorou meninas, mas que há cerca de três anos havia se mudado para o exterior com o namorado estrangeiro. A filha, grávida de quatro meses, tomou a palavra e disse que não tinha problemas com as escolhas dos outros, mas que o problema é que eles não aceitavam que ela fosse “hetero”. Contou que queriam que seu marido “achasse tudo normal” e que “tinham que entender que as coisas iriam mudar com a chegada do bebê.”<br /><br />Seguiu-se uma acalorada discussão sobre fatores genéticos, ambientais e culturais na formação da sexualidade que tomou toda a primeira sessão e repetiu-se em todos os encontros, com intensidade cada vez menor. Falaram sobre o passado, as dificuldades para “assumir” suas escolhas no trabalho, na vizinhança, nas férias. Falaram sobre o presente, o casamento “muito rápido”, a gravidez não planejada, a dependência econômica da filha em relação ao genro, as saudades do filho distante. Mais do que tudo, falaram dos seus temores em relação ao futuro. A grande questão era se seria possível integrar o casal “hetero” à “família gay” e diminuir as expectativas sobre o futuro do bebê.<br /><br />O genro permaneceu calado e atento até a penúltima das seis sessões. De quando em vez perguntava como ele se sentia e se queria acrescentar algo, as respostas eram sempre: “bem” e “não”. Os outros todos eram tão ruidosos em seus relatos de experiências em “defesa de direitos”, “diversidade”, “liberdade”, “independência”... Ele se considerava “comum e sem graça”, “estava apaixonado e feliz por ser pai”, “não queria fazer um manifesto”. Era filho de um casal de agricultores de uma pequena cidade no Sul, tinha muitos irmãos, mas pouco contato com a família desde que viera para Brasília cursar a faculdade. Quando pedi que avaliasse nosso trabalho até o momento, me surpreendeu dizendo: “Eu aprendi muito vindo aqui, quando estou com vocês fora daqui tenho vergonha de fazer perguntas. Fiquei muito emocionado com as histórias... Mas, acho que não precisamos de terapia. Eu me impressiono com a coragem de vocês. Eu estou inseguro. Não sei como será o futuro e se nossos filhos serão ou não gays, mas tenho outros medos, que para mim são maiores.” Ouvindo-o, os outros emocionaram-se, falaram de seus medos. O irmão, das dificuldades do relacionamento intercultural, da dúvida em casar e obter a cidadania, os pais do medo da velhice, do susto de serem avós. Na sessão seguinte, trouxeram os companheiros, “avós tortos”. Algumas vezes, os vi de longe, em um shopping, no cinema, no restaurante... Parecem bem.<br /><br />“Todas as famílias felizes se assemelham; mas cada família infeliz, é infeliz a seu modo."(L. Tólstoi)Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-4098584679856439152010-03-09T16:57:00.002-03:002010-03-09T17:01:48.587-03:00As não conversasMinha mãe acha que não sou suficiente para a profissão que escolhi. Que o prédio irá cair. Os cálculos talvez estejam errados.<br />[Qual é o prazer em me deixar tão impotente? Por que precisa de mim assim?]<br /><br />Minha mãe tem chiliques com meu pai. Acha que ele pode trair. Que qualquer dia destes vai beber demais. Que vai comer qualquer piranha por aí.<br />[Você se acha tão pouco atraente assim?]<br /><br />Minha mãe é a melhor amiga da minha irmã. Diz que é preventivo. Que é preciso ficar por perto porque ela pode arranjar homem errado. Que só tem picaretas na praça. <br />[Você morre de inveja dela... Ela é jovem, linda e, para seu azar, muito sexy!]<br /> <br />Minha mãe faz qualquer coisa para proteger a família, fazer manutenção dos laços. Programa festa disso e festa daquilo. Diz que seus pais foram muito felizes, que seus avós também foram, que a tradição está se desmanchando em função de uma modernidade idiota.<br />[Você tem horror de pensar que um dia pode ficar sozinha...]<br />.<br />.<br />.<br />[Eu teria tanta coisa para te dizer, mãe, mas temo que você não suporte. Por isso, tudo fica na minha cabeça, pesada. As falas que não saem tomam meu corpo e minha vida. E você se defende, acusa, acusa... Não sei se quando você morrer, as falas irão também. Por enquanto, o que me amarra é uma enorme pena, pois você está irremediavelmente sozinha. Minha irmã não ficará aqui muito tempo, meu pai já tem várias amantes e eu, me caso no próximo ano e vou morar em Porto Alegre, como você nega... ]<br />[Pobre mãe.. Tudo já acabou.]<br /><br />[....]Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-36547083903633600512010-02-15T12:03:00.002-02:002010-02-15T12:10:57.461-02:00BreathlessEntrei tranqüila na clínica porque estava adiantada para meu primeiro paciente do dia. Planejava ler um pouco, fazer uns telefonemas...<br />- Dra, esse senhor está esperando.<br />Olhei para secretária sem entender e ela me retornou um olhar igualmente inquisitivo. Voltei-me para o homem de terno que estava sentado na sala de espera.<br /><br />- Sim, pois não. Em que posso ajudá-lo?<br />- Desculpe, é uma emergência. Meu... méee-di-co... me disse pa-ra pro-cu-rar uma p-siii-cóloga e indicou a se-nho-ra... Eu, eu não esss-too-uuu beemmm<br />(os olhares de outros dois pacientes que aguardavam e o da secretária foram unânimes em concordar com ele)<br />Parecia cansado, ou gago, de todo modo era aflitivo ouvi-lo e, lamentando perder os minutos que pensara dedicar ao artigo que pretendia ler, convidei-o a entrar na minha sala.<br /><br />Bruno (ele gostaria de ter um nome mais moderno) falou rápido, sem as pausas entre as sílabas, mas com longos suspiros.<br />- Não consigo respirar. O médico fez exames e disse que era psicológico e me deu seu nome. Estou aqui há quase uma hora, a secretária me pediu que esperasse. Desculpe, eu sei que tem que marcar hora. Mas, é uma emergência! Não consigo respirar! O que devo fazer? Deve ser rápido, nunca tive isso, sou muito saudável!<br />- Entendo, imagino que seja mesmo muito desagradável. O médico prescreveu algo para aliviar um pouco a sensação?<br />-Prescreveu, mas eu não tomei ainda. (tirou a receita do bolso interno do paletó e me entregou). Quis vir aqui antes. Vou melhorar?<br />- Sim, a medicação vai aliviar um pouco o seu desconforto. Eu vou fazer algumas perguntas agora e isso também deve ajudar. Mas eu tenho apenas alguns minutos, então, hoje é só um primeiro contato. Agendaremos um horário para a primeira data disponível e, então, combinaremos melhor, OK?<br />(colocou-se mais na ponta da cadeira e me fitou)<br />-Perguntas? Pensei que a Sra. me diria o que fazer para voltar a respirar melhor. (suspiro) Sua secretária não me deixou pagar essa, mas vou precisar de mais consultas?(suspiro)<br />- Sim, estou entendendo que sua falta de ar é um sinal de ansiedade e se falarmos um pouco sobre isso, em geral, alivia. Mas, precisaremos de algum tempo para compreender a ansiedade em si...<br />-P-e-r-gunnnnn-tee-ee.<br />- Me fale um pouco sobre como está sua vida, se houve alguma mudança recente...<br /> Em menos de dois minutos, sem pausas e nem suspiros, como se falasse em um único fôlego, me contou que tinha 54 anos, que estava recém-separado, tinha duas filhas adultas e um prestigiado emprego público. Recentemente, iniciara um namoro com uma mulher vinte anos mais jovem. Disse-me que estava na melhor fase de sua vida, não se sentia ansioso.<br />- Com tantas mudanças, na melhor fase de sua vida, como se sente?<br />-Bem, muito bem. Mas há uns dois dias, minha namorada passou a noite em minha casa pela primeira vez e me disse que entendia porque meu casamento tinha acabado. Eu fiquei muito surpreso, ela me disse que eu deveria perguntar a minha ex-mulher como era nossa vida sexual. Aí eu fiquei confuso. Tinha dito a ela que minha mulher tinha pouco interesse em sexo e que esse era um dos motivos pelos quais me separara. Ela riu e disse que entendia, mas que eu deveria mesmo perguntar. Por acaso, naquela tarde, fui a um evento de uma de minhas filhas e encontrei minha ex-mulher. Somos muito amigos, o casamento acabara muitos anos antes da separação, ficamos juntos até as meninas crescerem. Ela ficou com a casa, tem um bom emprego e é ainda bem bonita. Contei a ela sobre a conversa com minha namorada e ela riu. Ela riu e me disse que gostava muito de sexo e que nunca tivera coragem de me dizer o quanto eu era um amante sem jeito, apressado. Disse que torcia por mim e que esperava que minha namorada me ajudasse. Fiquei muito envergonhado. Não esperava. Não tive tempo de falar com minha namorada, íamos nos encontrar hoje, mas passei mal... Vou vê-la amanhã... A Sra. não acha que foi isso que me tirou o fôlego, acha?<br />- Não sei, mas me parece uma situação difícil...<br />- É (suspiro) nunca pensei (suspiro), nunca pensei. Eu nasci no interior, minha primeira vez foi com uma puta. Ela foi minha primeira namorada firme, casamos muito jovens, ela era virgem. Nunca foi muito bom com ela. Saí umas vezes com umas garotas de programa, mais nada. Quando me separei, pensei que teria a vida sexual que sempre imaginei. A Mônica (ele gostaria que ela tivesse um nome mais tradicional) é tão linda, jovem... (mais suspiros e algumas lágrimas)<br />- (passando a caixa de lenços) Pois é, Bruno, parece que está mesmo difícil atravessar esse momento. Você acha que podemos marcar uma sessão?<br /><br />Marcamos a primeira sessão para o dia seguinte. Bruno fez psicoterapia por mais de dois anos, nesse período, casou-se com Mônica. Nessa semana me enviou um e-mail para contar que a filha mais velha vai se casar.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-22686417519640582042010-02-13T10:48:00.008-02:002010-02-15T12:20:14.519-02:00Penélope CharmosaNão era propriamente bonita, mas chamava atenção com suas roupas discretamente provocantes. O cabelo longo, cuidadosamente loiro, a maquiagem sempre renovada e as unhas - em variados tons de vermelho - impecáveis. Queixava-se de dores, alergias, insônias, problemas gástricos... Entre uma e outra queixa, alguns detalhes da vida, principalmente o trabalho.<br /><br />O chefe, vivia em outra cidade, vinha poucas vezes a Brasília, apressado. Conversavam muito sobre seus planos futuros - os dele - e ela se considerava parte daquela vida que ele descrevia com detalhes de glamour. O chefe era "a razão de sua vida" e não poucas vezes, o celular especial que era só para falar com ele interrompia a sessão. Ele sempre tinha novas demandas e a valorizava muito, "acho que ele tem uma queda por mim, mas é sério e casado."<br /><br />O namorado era o contraponto ao chefe. Era "doido" por ela e por tudo mais. A vida com ele era sempre cheia de surpresas e mudanças e tratamentos e crises. Falava dele sempre às pressas, uma narrativa de radio novela, diálogos intensos com ranger de portas, gritos, sussurros. Falava sempre que não podia deixá-lo, "coitado, não está bem, precisa de mim!"<br /><br />Umas poucas vezes, falava sobre as amigas, dividiam-se em dois times: as do passado e as do presente. As do passado, via pouco, mas com elas compartilhava valores tradicionais. As via pouco porque as três eram casadas, "não sei, acho que têm ciúmes de mim, nos afastamos,não sei".As do presente, mudavam com frequencia, era tudo muito intenso no começo, passavem muito tempo juntas, usavam as mesmas roupas, perfumes, liam os mesmos livros. Mas, então, surgiam os homens, "aí tudo muda né? elas são muito mais soltas, fazem umas loucuras! estou saindo com uma pessoa do curso." Sim, os cursos. Eram muitos, ikebana, danças circulares, pós-graduações em sua área, uma infinidade e atividades que tomavam o pouco de tempo que sobrava entre os telefonemas e e-mails do chefe, as crises do namorado.<br /><br />A família, era o tema menos mencionado, o mais difícil. Tinha muitos parentes, mas se relacionava pouco com eles. Vivia com os pais, mas também se relacionava pouco com eles. Foi criada por uma tia, que morrera há poucos anos, "as alergias começaram logo depois da morte dela".<br /><br />O carro. O carro era uma de suas maiores alegrias, ou melhor, os carros. sempre lindos e novos, importados, com todos os acessórios. demandavam uma pesquisa exaustiva antes de serem comprados. E um londo tempo de dúvida. "não sei não, vi um mais bonito", "talvez se tivesse esperado mais, poderia ter comprado um mais novo, mais rápido, com um câmbio diferente, ou de outra cor".<br /><br />As jóias. Colecionava brincos e pulseiras. Exibia-as com discrição, mas sempre estavam lá. Endividava-se para comprá-las. "foi caro, mas é coisa boa, não pude resistir, a verdade é que nem tentei."<br /><br />Assim, passaram-se anos. As dores cada vez menos frequentes, "as alergias sumiram". O chefe arranjou uma amante e foi trabalhar em outro lugar, mas ela manteve-se no emprego, com apenas um celular, que agora mantinha desligado nas sessões. Com uma das amigas brigou tão feio que foram parar na polícia. Outra tia morreu. Um dos sobrinhos escapou por pouco. Cuidou dos pais idosos em mais de uma internação. O namorado voltou para cidade de origem e se casou. Apaixonou-se pelo tênis e agora é no clube que encontra os "conhecidos, amigos são muito raros sabe?"<br /><br />Homens são seu maior desafio. Muitos a cortejam, saem com ela "como posso dizer que sou virgem aos 40 anos? quem vai acreditar? ou querer?"<br />Nas sessões, continuávamos falando - dramatizar jamais foi uma possibilidade - sobre trabalho, jóias e carros. A vida, as mudanças, os desafios, eram como notas de rodapé. E o cabelo deixou de ser tão cuidosamente loiro e, às vezes, vinha sem maquiagem. Uma vez veio até com o cabelo molhado e uniforme de tênis. E comprou um carro popular, com medo de assaltos, "sou uma mulher sozinha, tenho que me cuidar". Mantinha as jóias. A única vez que me ligou "de emergência" foi para perguntar como reagir ao presente de um cliente, uma jóia "eu já tenho, mas não quero ser indelicada. como dizer não?"<br /><br />Como se tornara uma mulher sob aquela personagem de desenho animado? Muitas vezes me perguntei de onde vinham as mudanças. Nossa relação se parecia tão pouco com o que se convenciona chamar de psicoterapia, ainda mais psicodramática.<br />Como para outra Penélope, a grega, o tempo de espera era em si mesmo, a cura.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-15272164569556230312010-01-04T09:57:00.002-02:002010-01-04T10:00:12.493-02:00Amor UniversalPedro gostou de Fátima, uma portuguesa que vivia na Holanda, desde a primeira teclada. Ela era divertida, alegre, inteligente. Desaparecia de tempos em tempos, mas depois voltava e coisa virou amor. Bem mais dele do que dela. Não encontrava mulher assim no Brasil.<br /><br />João, brasileiro que fazia pós-graduação em Londres, e amigo de infância de Pedro teclava com John (João e John, que coincidência!!), mas com o codinome de Célia, uma carioca quente e sexuada. Não era fácil para John acreditar que Célia não tivesse uma câmera para que a virtualidade fosse ainda mais quente. João, no entanto, era apaixonado desde-de-a-infância por seu amigo Pedro, que continuou morando com os pais em São Paulo. A bem da verdade, nunca houve nada entre os dois, a não ser brincadeiras na infância. Mas Pedro ‘ficou’ inteiramente heterossexual e a coisa não andou.<br /><br />Fátima, isso Pedro ainda não sabia, tinha algo que os psiquiatras chamavam de bipolaridade, o que explicava os períodos de desaparecimentos, justificados pelo estudo e trabalho intensos. Mas Pedro, apaixonado que estava, vasculhou o Orkut de Fátima e ficou amigo de uma outra brasileira que também morava em Amsterdã. Clara era uma baiana, casada com um artista francês, e entediada com as horas e horas de solidão com o marido pintor e rico, não saia da frente do computador. Pedro, então, interessado na vida na Europa, do ponto de vista de uma brasileira, começou a conversar com Clara pela internet. O intuito (e foram precisos meses para atingi-lo...) era, evidentemente, saber de Fátima. <br /><br />Fátima conheceu Claude, o francês marido de Clara, numa vernissage e adorou os quadros radicalmente coloridos e tropicais, produção gerada pela paixão que tinha por Clara. Clara era uma garota de programa em Salvador, cidade que Claude passou as férias de verão europeu e meses depois ele se casou com ela no Brasil e na Holanda, com família e tudo mais. Claude, na verdade e nem ele sabia disso, fez o que sempre desejara: se casar com uma puta. Não acreditava que isso tivesse implicações maiores.<br /><br />Fátima logo ficou amiga de Clara, uma mulher solar vivendo um tanto quanto melancolicamente na Europa. E Clara pre-ci-sa-va falar português de vez em quando, mesmo que fosse português de Portugal. E as duas se encontravam na melancolia... E quando Fátima ficava animada, Clara achava que a Bahia entrava pela porta... E Fátima facilitou a vida de Clara por lá, apresentou amigos e coisa e tal.<br /><br />Um dia falou de Pedro para Clara, que, por sua vez, tinha amigos virtuais até onde sua capacidade lingüística chegava. Pedro de São Paulo? Seria o mesmo? <br /><br />Pedro, ao ser inquirido por Fátima, disse que tudo era uma enorme coincidência, mas aí ele já sabia que Fátima tinha uma bipolaridade, que era tratada por um ótimo médico, etc. Começou a ‘desencanar’ de Fátima e se interessar por Clara que parecia mais autenticamente alegre. <br /><br />John, por sua vez, precisava conhecer Célia. João fotografou uma amiga brasileira, na praia, quando veio ao Brasil. E não teve duvida: enviou as fotos em poses sou-gostosa para John. Este enlouqueceu de paixão e sei lá mais o quê. Queria por que queria ir para Londres conhecer essa maravilhosa mulher. E o amor aumentava quanto mais Célia se fazia de misteriosa.<br /><br />Muitos outros personagens entraram na história. Ela teve momentos felizes e infelizes. Mas todos eles tinham uma impressão fantástica de atravessar o planeta e que era possível, finalmente, realizar o amor – feliz ou infeliz – universal. E era isso o que importava, era isso o que os unia....Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-66104410986346821342009-12-13T16:46:00.001-02:002009-12-13T16:48:53.407-02:00A vida íntima com meu paiSempre foi um mistério para mim: quem teria sido meu pai?<br />Lembro de alguém, na infância, apontar um rosto e dizer aquele é seu pai. O rosto não lançou um olhar para mim. O vazio no registro civil era uma humilhação, um vazio, uma libertação.<br /><br />Construí, a partir disso, muitas histórias. Os muitos nomes dele, histórias para ele, justificativas para ele. Preferia acreditar que fosse bom, que não fosse um cafajeste, como ouvi de minha avó, um dia, escutando atrás da porta.<br />As explicações eram sempre ralas, improváveis. Um dia me cansei e não perguntei mais.<br />Uma mudança, no entanto, aconteceu quando minha mãe morreu. Nos dias que antecederam a morte me disse: este é o nome dele e esta é a cidade dele. Apenas isso enquanto apontava um cartão amarelado.<br /><br />Os meses se passaram e um dia, comecei a procurar pelo homem.<br />Foi facílimo encontrá-lo no pequeno povoado do interior de Minas Gerais. Morava com sua mulher. Era senhor com mais de sessenta anos. Eu disse sem muitos rodeios quem eu era. O homem não mexeu nenhum músculo. Apenas disse Ah,tá bom... como se esperasse por isso fazia muitos anos. Ficamos nos olhando por curiosidade checando as semelhanças e diferenças, em uma espécie de jogo dos sete erros. A esposa trouxe um cafezinho feito na hora em uma xícara branca. Falamos sobre o tempo, sobre morar na cidade grande, sobre as chuvas. E nada mais.<br /><br />Eu não sei porquê, mas preferi continuar brincando com os meus inúmeros pais, na imaginação.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-10731384998787853282009-12-09T10:33:00.008-02:002009-12-11T17:17:57.330-02:00No aeroportoEla começou a escrever principalmente para evitar o doce e melancólico olhar que a senhora sentada à sua frente insistia em lançar. A senhora havia tomado conta de suas coisas enquanto ela foi em busca do celular, esquecido no balcão de embarque. Na volta, a senhora ouviu as últimas palavras da conversa ao telefone:<br />"A gente se fala.. Beijo". A senhora viu suas lágrimas.<br /><br />Ela chora muito, mas apenas na presença da beleza extrema, obras de arte, música, teatro, filmes como o de ontem à noite e livros... Ela nunca chora por suas tristezas. Ela é uma mulher muito racional, nunca chora por si mesma, nunca. Mas hoje não. Hoje ela chora, chora por ele. É para ele que ela escreve? Não se pode dizer. Ela escreve no computador e também em um pequeno bloco de anotações. Ela escreve para evitar o olhar das pessoas que esperam pelo embarque, para evitar que vejam suas lágrimas.<br /><br />"Mas, por que ela chora?" pensa a senhora. A senhora olha para ela uma última vez e sai andando. Ela tem lágrimas em seus próprios olhos, ela sabe, ela se lembra como é doloroso dizer adeus. Uma vez teve alguém que amava e precisou deixar, ela lembra. Despede-se como se a conhecesse: "Tudo de bom!" É verdadeiro, a senhora realmente deseja que ela pare de chorar. Realmente deseja que ela veja o amado novamente, em breve. Pelo que ouviu - ela falava com ele tão carinhosamente - parece evidente que são felizes, deve ser apenas uma questão de tempo. A senhora caminha de volta para sua própria vida, vagarosamente, imaginando o futuro.<br /><br />Ela olha o grande relógio na parede, uma voz metálica convida para o embarque.<br />O telefone toca e ela pensa: "É ele. Atravessou a chuva, o rio bloqueando a rua, o engarrafamento e veio ao aeroporto." Por um instante antecipa o beijo,o abraço, o tempo que não tiveram. Os carinhos que ela tanto deseja e são tão raros com ele.<br />Não é ele. Um amigo, preocupado com as notícias da enchente, se oferece para apanhá-la, caso ela não consiga embarcar. Ela sorri. Assegura que está tudo bem, o vôo sairá no horário. "Obrigada pelo cuidado!"<br /><br />Mais lágrimas. Mais uma viagem. Ela escreve a última carta.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-46075025700217646152009-10-03T16:28:00.000-03:002009-12-10T16:36:58.680-02:00Cachorrar o mundoO cachorro morreu na sexta.<br />A csa ficou vazia, mas o cheiro do pêlo tomava conta de tudo.<br />Morri.<br />Morremos.<br />Foi embora o universo doce, dos olhos que os humanos quase nunca ousam mostrar, da maciez da desproteção, da imponência da fragilidade.<br />O mundo ficou pior.<br />Mas, amanhã de manhã, busca uma nova cachorrinha.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-43413073188000428692009-08-17T10:36:00.004-03:002009-08-17T10:44:39.709-03:00De livroDisseram-lhe uma vez: “Seu caso é de livro!” O que queria dizer isso? Não sabia e desconfiava que não fosse bom.<br /><br />Ela não queria ser “de livro”, ou melhor, não se sentia “de livro”, previsível, comum. Um conjunto de dores incomuns e variáveis, um sofrimento de anos. Insuportável. Não fosse católica, teria posto fim ao sofrimento, mas temia a morte. Não o Inferno, mas o Céu também. Temia a morte, temia tornar-se invisível, como se sentia.Inviável.<br />No trabalho até se destacava aqui e ali, ocupava mesmo uma posição de chefia: coordenadora. Contudo, sentia-se sempre invisível, desconheciam-na. “Uma atriz.” Sim, sentia-se uma atriz. Quisera mesmo estudar teatro na juventude. O pai preocupado com seu futuro, com razão, fizera-a estudar algo mais prático. Completou a faculdade, fez um concurso disputado, passou e agora era coordenadora da seção. “Atriz”, “Dramática”, “Histriônica”. Preferia isso tudo, com o tom pejorativo que os terapeutas e ela mesma empregavam do que o infame: “De livro.”<br /><br />Perguntou, então, a essa nova terapeuta, que se dizia “psicoterapeuta psicodramatista”, perguntou sem hesitar porque ensaiara muitas vezes antes: “Você me considera um caso de livro?”<br />Quase ficou com pena da pobre, coitada, deveria ser inexperiente. Parecia nova, mas talvez não fosse... Era séria demais para ter a idade que parecia. Ou mais velha do que parecia porque era séria. Emendou: “Já me disseram isso... Era uma psiquiatra muito experiente. Então, quero que você me diga se ela estava certa...”<br />Pronto, preenchera o silêncio, ganhara tempo para a terapeuta. Simpatizara com ela, queria ouvir uma boa resposta e ficar. Depois de tantos médicos, psiquiatras e terapeutas e cartomantes... Queria ficar. A sala era estranha, objetos meio desencontrados, uma plataforma de madeira no centro da sala...<br />Fez ar de ansiedade e expectativa. Gostava dessa sua expressão, especialmente quando a usava com alguém pela primeira vez, porque dificilmente percebiam que disfarçava o desafio. Sentia-se nessas horas uma esfinge: “decifra-me ou devoro-te”. Talvez fosse mesmo de livro, uma tragédia, grega.<br />A psicoterapeuta séria sorriu e respondeu que, sim, ela lembrava algumas personagens de livros que ela havia lido e perguntou se ela gostava de literatura.<br />Boa resposta. Ela sabia que a outra fizera da resposta uma pergunta e esse era o jeito dos psicoterapeutas – ao menos daqueles que valiam esse nome empolado – fazerem pensar/sentir coisas diferentes das que sabemos. Queria ficar, sentia um cheiro de grama sendo cortada no jardim...<br />“Não, não gosto de literatura. Gosto de música.”<br />“Que música você acha que parece com você?”<br /><br />Ficou. Usou os tais objetos, até ganhou um, um pequeno ninho de passarinho meio amassado. Descobriu que a tal plataforma chamava-se tablado, mas nunca fez mesmo questão dele. Era uma atriz sem tablado. A história da música rendeu e, muitas vezes, sentiu aquele cheiro de grama cortada.<br /><br />Ontem a psicoterapeuta psicodramatista, que parecia séria, mas é engraçada e não é mesmo tão jovem, perguntou: “Você se importa se eu contar sua história em um livro?”Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-84590546445053077802009-08-09T21:37:00.001-03:002009-08-09T21:39:08.908-03:00Em famíliaNão suportava a mãe dele metida em roupas com números sempre menores e o arzinho de quem-já-viveu-bem-mais-que-você-minha-filha-e-portanto-sabe.<br />Aquele irmão dela sempre alegre, com um excessivo bom humor e umas pitadas de auto-ajuda. Lá vem ele. Sorria.<br /><br />E o pai dele? Sempre isolado, como se guardasse um segredo de Estado.<br />O primo bichinha que no inverno insistia em usar echarpes longuíssimas e nos almoços longuíssimos insistia em trazer um namorado novo para mostrar o quanto era moderno e liberal.<br /><br />A irritação maior para ele vinha do tio papa hóstia, moralista, mas que foi visto em uma avenida suspeita da cidade. Não, meu filho, não é aquela freqüentada por putas. A outra, a que circulam as travecas desavergonhadas.<br /><br />O irmão, então, mão de vaca que nunca, mas nunca mesmo, paga a parte que lhe cabe nos longuíssimos churrascos.<br /><br />E a sonsa da tia? Sempre disfarçando.<br />A sobrinha, que felizmente nunca aparecia, pois entrou para uma seita indiana. Coisa mais fora de moda...<br /><br />Pensando estas coisas e muitas outras mais, eles sentaram-se, muito elegantes, para a ceia do Natal.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-27463705251936652522009-08-09T21:22:00.004-03:002009-08-09T21:36:45.954-03:00Em famíliaUma semana na praia. Sonhara com esse dia tantas vezes que custava a acreditar que ele havia chegado. O trabalho era uma paixão que tomava todo o seu tempo e nos últimos anos, com a chegada dos filhos, os momentos de lazer eram raros. Os preparativos para a viagem, o avião, as duas horas no carro alugado...O sol, o cheiro do mar, o céu quase tão azul quanto o do cerrado tornavam tudo mais menos importante. <br />A pousada, reservada com meses de antecedência, era linda e “perfeita para casais com filhos”, como havia lido no anúncio. A areia da praia logo em frente ao chalé era fininha e o mar raso e calmo. Os dois meninos entraram imediatamente na água e ela deitou-se na espreguiçadeira para ler um dos muitos livros que ganhara no Natal. Mas antes, sentou-se por alguns minutos observando-os brincar, lembrou-se de sua própria infância, passada em uma cidade do nordeste. Uma infância muito diferente da que proporcionava aos filhos, sempre tão atarefados em aulas extras e com tão pouco tempo para brincar assim, correndo livres, apenas de calção, sem os brinquedos sofisticados, sem preocupação com segurança, com a violência das grandes cidades.<br />A alegria desse momento durou tanto que o marido, que demorou a chegar à praia terminando de retirar as coisas do carro, ainda a viu sorrindo e arriscou perguntar:<br />- A baía aqui é tão bonita. Vamos passear de lancha amanhã?<br />Ela era muito avessa a qualquer tipo de esporte e sempre tinha a desculpa do cansaço para evitar aventuras nas férias. Em geral, para aumentar as chances de que ela aceitasse, ele esperava os últimos dias para propor as caminhadas, ou os passeios de bicicleta, de barco. Mas dessa vez, ela não hesitou:<br />- Claro!<br />Ele ficou felicíssimo, beijou-a e entrou na água para brincar com as crianças. Ela leu, tirou uma soneca, almoçou sem insistir que os meninos comessem legumes. No fim da tarde, ainda de muito bom humor, foi com o marido até o píer para contratar o passeio de barco. Em poucos minutos resolveram tudo. O único inconveniente era que a lancha, com capacidade para seis passageiros, só saia com lotação completa. O capitão avisou que haveria um casal com eles durante o passeio.<br />As crianças, excitadas com seu primeiro passeio de lancha, acordaram cedo, se arrumaram rápido e tomaram café da manhã sem nenhum incidente. Chegaram ao píer brincando de imaginar como seria o casal: recém casados em lua-de-mel, velhinhos comemorando bodas de ouro, namorados... Com oito e seis anos, os garotos já não faziam tanta algazarra e nem demandavam atenção integral, ainda assim tinham algum receio de que as crianças pudessem incomodar os desconhecidos e aproveitavam a brincadeira para orientá-los a brincar de modo a não comprometer a privacidade do casal. Os meninos vieram depois de alguns anos de casamento, foram desejados e planejados, eles se revezavam no cuidado com eles e tinham orgulho de não ter precisado de babás. Sabiam bem a diferença entre uma viagem a dois e uma viagem de família. <br />A lancha era bastante espaçosa, os meninos ouviram atentos e maravilhados a todas as explicações do capitão e imediatamente ocuparam o lugar que ele indicou como “o melhor para ver a paisagem e brincar”. Ela estava distraída procurando um bom lugar para estender a toalha quando ouviu às suas costas o capitão iniciando as apresentações.<br />Em um primeiro momento, ainda sem se virar, não prestou muita atenção aos nomes, mas pelas vozes imaginou um casal em torno dos trinta anos, já vivendo juntos há alguns anos, mas ainda sem filhos. Gostava de imaginar histórias sobre as pessoas e era mais divertido quando não as via porque seu treino profissional permitia “adivinhar” muitas características e vivências a partir da aparência, dos gestos, das roupas.<br />Ao se virar, a surpresa foi tanta que ela gaguejou ao cumprimentá-los e não pôde disfarçar seu desagrado. O marido, depois de tantos anos de convivência, compreendeu imediatamente a situação, sem que ela precisasse explicar, e foi ágil em propor uma distribuição de espaços que permitia que o casal ficasse com a melhor vista e fora de seu campo de visão. Os meninos cumprimentaram os recém-chegados distraidamente, estavam muito interessados em definir com o ajudante o horário e o cardápio do lanche.<br />Ela murchou. No primeiro momento, pensou em inventar uma desculpa e sair, mas seria uma descortesia tão grande com o casal, uma decepção para o marido e os meninos... Depois pensou em tomar o antialérgico que carregava sempre na bolsa, mas usava apenas em último caso, porque provocava sonolência... Finalmente, concluiu que não havia nada a fazer e apenas rezou para que eles não viessem falar com ela durante o passeio... Acomodou-se na toalha, pegou seu livro e olhando a beleza do mar tentou recuperar a sensação do dia anterior.<br />Uma semana na praia. A cidade era minúscula, com certeza iriam se encontrar muitas vezes. Até poderia escapar durante esse passeio, mas e nas outras ocasiões? Aproveitou muito pouco o passeio, os meninos chegaram a perguntar por que ela estava tão calada, alegou um pouco de enjôo, desculpa que também justificou que nem olhasse para o lanche. O marido brincou muito com as crianças e, de quando em vez, trocou com ela olhares cúmplices. Foram quatro horas intermináveis em que pouco conseguiu se concentrar no livro ou na paisagem. Pensou em tudo que deixara para trás para ter essa semana na praia, os projetos na instituição pública, os pacientes no consultório particular, as análises das entrevistas para a tese. Tentara olhar o mínimo possível na direção do casal, não trocou mais do que meia dúzia de frases. Agradeceu os elogios aos meninos, que de fato se portaram muito bem. Repetiu a desculpa do enjôo que na hora até sentira de fato. Comentou sobre os riscos do turismo predatório, de um modo tão vago que acelerou o término precoce do debate entre o capitão e seu marido. <br />Na volta, antes mesmo do barco atracar, o casal aproveitou um momento em que ela estava sozinha, com os olhos abertos e o livro fechado, para dizer apressadamente, alternando as frases:<br />- Nós estamos muito bem, viu?! Desde a última sessão, não tivemos mais nenhuma briga. Acho que aprendemos a resolver os problemas sem agressões. Muito obrigada!<br />-Passamos uma semana aqui e vamos embora hoje à noite. Vocês vão gostar daqui, é muito calmo!<br />- Que bom encontrar a senhora! Que linda sua família! Nós sempre imaginamos como seria a família da nossa terapeuta de família...<br />-Bem, não queremos atrapalhar...<br />- Melhoras para seu enjôo...<br />O marido e as crianças aproximaram-se, trocaram as últimas despedidas. O casal partiu sorridente, voltando-se algumas vezes para acenar para as crianças que corriam pouco atrás deles. <br />Recolheu a toalha, guardou o livro na mochila, pegou a mão do marido para sair da lancha. O capitão lamentou que ela não tivesse aproveitado o passeio e ofereceu um desconto para um passeio mais curto. Mais juntos do que se houvessem combinado, ela e o marido responderam sem hesitar:<br />-Não, obrigada.<br />Apressou o passo para alcançar os meninos e ainda segurando forte a mão do marido, pensou que, a despeito do desconforto de perder a privacidade, o passeio com o casal de pacientes havia sido bom. Era gratificante ver o resultado de seu trabalho.<br />Esqueceu os entraves burocráticos que atrasaram seus projetos na instituição pública, esqueceu os pacientes mais graves que referira ao seu sócio, as dificuldades na transcrição das entrevistas da tese que estava escrevendo.<br />Uma semana na praia, só com a família.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-91423999892135007892009-07-25T21:00:00.001-03:002009-07-25T21:06:36.691-03:00MorteEle diz.<br />Eu me retorço.<br /><br />Sim, na fantasia a Virgem abre o manto e se mostra inteiramente nua. O Cristo, mesmo crucificado, tem o pênis ereto e poderoso por baixo do pouco pano claro que envolve seu corpo. A igreja é um lugar muito, mas muito erotizado para ele. Uma imaginação abominável, digna de muito castigo.<br />Pior ainda quando começa a ter, ele próprio, ereções durante a missa, correndo o risco de ejacular quando o padre eleva a hóstia sagrada. Ou quando sodomiza algum santo ou santa de alta estirpe. Horror, horror...<br /><br />Recuo para os doces presépios da minha infância, nas azuis noites orientais e frias de meu catolicismo poético com uma Virgem assexuada, uma José velho e submisso e com um deus menino absolutamente divinizado na sua brancura ocidental. Por que sai de minha bolha santa?<br /><br />Todo o imaginário católico estava lá, devassado. E ele não era, de modo algum, o Marques de Sade, mas um homem comum e culpado.<br /><br />Ele chora.<br />Várias vezes por semana vai ao túmulo do filho morto, logo seu primogênito, a quem ele não conseguiu salvar. A culpa o derruba com bombas lançadas para a implosão do precário edifício-corpo magro e operário. <br />Nada melhor que fantasias sexuais coladas no Cristo e na Virgem para melhor puni-lo. Punição (des) exemplar, de eficiência comprovada. <br />Os ventos frios de abril sopravam, os trigais balançavam. Naquele tempo Deus cuidava de tudo. O mundo era harmônico para ele, um homem de bem. Toda a sexualidade ia para o lugar onde Deus mandava. Ele vivia inundado pela graça divina. Chegava a flutuar de tanta santidade.<br />Lembra bem do dia que Deus o abandonou, lembra da condenação dada pelo médico. O que teria feito ele para merecer tamanho castigo? Não consegue entender o mundo da tragédia, da doença da morte, quando Deus faz de conta que não vê nada, não faz nada. Fica parado, como que contemplando sadicamente os pequenos mortais que, como uma pétala tragada pelo vento, imploram imploram sem resposta de Deus. Foi quando mandou Deus se foder. Aí começou tudo, a guerra santa. Orações e blasfêmias, pedidos de perdão e violência contra o corpo, ódio e depressão. <br />O corpo do filho-que-já-não-mais-seu, mas Dele, friamente Dele, o Monstro voraz que precisa da carne humana para sobreviver, desce para a terra e será asfixiado.<br /><br />O caixão preto de minha avó é levado pela aldeia. Santificado pelo padre, seu pobre corpo, corroído pelo câncer vai embora. Teria feito eu, menino livre, algo de mal? Por que logo ela, em quem eu pendia e dependia tanto?<br /><br />Mas sua culpa é muita antiga e existia antes mesmo de Deus cuidar dele. Existia quando seu pai olhava de modo duro, sem piedade e esse olhar queria dizer que ele era um tremendo peso. Que o nascimento afastou do pai a mulher por quem ele era apaixonado, que um filho era uma lástima, um erro escarrado.<br />E foi por isso que se casou cedo, por isso que quis modificar o destino tendo um filho e - milagre! – era um menino! Gostava de ser um pai jovem e bonito, carregando um filho lindo nos braços. Todos admiravam sua paciência, seu carinho para com aquele bebê. Agradecia a Deus por isso, por poder ser o pai que o seu pai não foi. Seu filho jamais passaria pelo que passou. <br />Culpas entrelaçadas nessas mortes ostensivas, definidoras. Marcas cravadas como canivete na árvore da vida.<br /><br />Longe, longe onde o horizonte é azul perdido no tempo, em um passado-futuro de cinema, o mar é doce.<br />Ouço Bach, tenho na mão uma colher de doce de abóbora com coco. E nenhuma culpa, pois no peito a brisa é fresca e ocupa tudo.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-85087084497375361092009-07-25T19:26:00.001-03:002009-07-25T19:36:18.201-03:00MorteDescobri o que era a morte quando a conheci de perto, não nos corpos das mesas de anatomia, mas na dor de um cachorro, cobaia de meus estudos em farmacologia. Descobri como era combater a morte e perder, decidi combater apenas a dor. Ainda assim, recém-formada, fui trabalhar em um hospital. Nos hospitais, a batalha contra a morte é diária, mas não nesse.<br />Era um hospital de re-habilitação, nosso foco era a vida, a retomada da vida, após um azar na roleta genética ou um incidente trágico. Tratávamos da vida e todos os dias eu via, sentia, a vida triunfar sobre as mais duras limitações. Cada família que mostrava seu amor por uma criança que nunca atingiria os modelos de felicidade vigentes; cada pessoa que descobria em si a força e a vontade de transcender a dor da imobilidade e da dependência me afastava mais e mais da idéia da morte, da certeza de que ela sempre vence.<br />Até que conheci a família Pereira. Os Pereira eram quatro, uma mãe e seus três filhos, todos do sexo masculino, dois portadores de distrofia muscular progressiva, tipo Duchenne. O nome comprido assusta, a doença mais ainda. Essa é uma doença hereditária que causa a degeneração progressiva dos músculos, atinge apenas meninos, é transmitida pela mãe, os primeiros sintomas aparecem por volta dos quatro anos de idade e a perda de mobilidade prossegue até o final da adolescência, quando a perda da capacidade respiratória conduz ao óbito na totalidade dos casos.<br />Na família Pereira a morte era uma presença constante, D. Sílvia já havia perdido um dos filhos vítima da doença quando a conheci e um de seus outros filhos, Cláudio de 21 anos, estava restrito ao leito. Bernardo, com 16 anos, já apresentava dificuldades para caminhar. Pedro, o caçula de 13 anos, não era portador da doença. Cláudio me ensinou a rir da morte, Bernardo me ensinou a compreendê-la e D. Sílvia me ensinou muito sobre a vida, sobre o que é dar a vida, ser mãe. Pedro era muito maduro para sua idade, ajudava a mãe a cuidar dos irmãos, era o que mais sofria.<br />Escolhi o nome Pereira porque a pereira é uma árvore que dá excelentes frutos e significa “Vida longa” na cultura oriental. Os Pereira viviam uma vida curta, porém intensa e seu exemplo me acompanha sempre e me ajudou muito a lidar com a presença da morte, cada vez mais freqüente, à medida que envelheço. Quando escolhi não combater a morte de frente, eu era muito jovem e ninguém tinha morrido.<br />No início, eu tentei fugir dessa família, da presença da morte na vida deles, mas não pude. Eu era a única psicóloga na equipe que acompanhava os portadores de Duchenne, eu conduzia o grupo de pais ao qual D. Sílvia comparecia mensalmente, o grupo de adolescentes que se reunia quinzenalmente e acompanhei a assistente social e a fisioterapeuta que faziam visitas domiciliares a Cláudio.<br />Na primeira visita à casa pobre na qual D. Sílvia morava, o mais impressionante foi a alegria da família. Receberam-nos com muita deferência como era comum, mas a presença dos amigos e vizinhos e a música que vinha do quarto de Cláudio eram um diferencial importante em relação ao clima solene que marcava a maioria das visitas. As famílias sentiam-se de algum modo avaliadas pela equipe, mas essa família parecia nos receber como parentes distantes, com uma hospitalidade alegre, recheada de histórias contadas durante uma visita a todos os cômodos da casa. O quarto de Cláudio, com uma grande janela que permitia que ele interagisse com os vizinhos sem sair da cama, era o cômodo mais iluminado e ruidoso.<br />A música alta foi abaixada por um dos amigos que lia para ele quando entramos e ele nos recebeu com um largo sorriso e um cumprimento em voz baixa, porque ele já sofria com as dificuldades respiratórias. Fez logo um gracejo para a fisioterapeuta, uma moça solteira quase da idade dele e muito bonita. Na seqüência, elogiou também a mim e à assistente social, ressalvando que o fazia com respeito por sermos casadas.<br />Foi especialmente atencioso comigo porque me interessei pelo livro que seu amigo lia e elogiei a música. Conversamos muito, ele era um jovem inteligente e muito bem humorado, era fácil esquecer que era praticamente um paciente terminal. Mas ele também falava, sem piadas, mas com naturalidade sobre sua morte próxima e mostrava que sua alegria não era uma negação de sua doença, era sua maneira de enfrentá-la. Cláudio ria de tudo, ria até da morte, mas não porque não percebesse as dificuldades da vida ou as dores da perda, mas exatamente porque as sentia agudamente e as combatia com as armas de que dispunha, seu senso estético e sua alegria. Vi Cláudio apenas essa vez. No mês seguinte ele foi internado em outro hospital para ter suporte respiratório, faleceu poucos meses depois.<br />Pedro ainda freqüentava o hospital dois anos depois, quando eu mudei de emprego. Nesse período, foi sempre o mais bem informado sobre sua doença. Coube a ele conduzir uma das discussões mais acaloradas do grupo de adolescentes, uma discussão sobre paixões e namoros com pessoas com doenças fatais. De um jeito muito suave, ele defendia a importância de todos eles terem vida social e, idealmente, namorar e ter vida sexual. Dizia que uma das maiores belezas da vida era o amor e que era uma sorte saber que esse amor não enfrentaria a rotina, o tédio, a velhice. Defendia que eles podiam viver um “amor de novela, sempre jovem”. Os outros jovens, incluindo meninas com outros tipos de miopatia, discordavam dele, diziam que era difícil sair, arranjar namorados com seu jeito esquisito de movimentar ou com a cadeira de rodas. Nas duas sessões que durou essa discussão e em várias outras sobre outros temas, Bernardo afirmava a importância de não “morrer de véspera”, de encontrar alternativas concretas – amizade com os vizinhos, na igreja, no hospital – para a solidão, “pior e mais mortal que qualquer doença”. Mais do que os argumentos, foram as experiências compartilhadas de paquera, primeiro beijo, primeira transa de Bernardo que incentivaram os outros membros do grupo a se aventurar no amor. Bernardo uma vez me disse que queria ser professor, acho que fomos seus primeiros alunos.<br />D. Sílvia sempre levava Pedro às reuniões de família. Um dia, fizeram uma cena juntos. A história nem era deles, a história era de uma moça que descobrira recentemente que seu filho de cinco anos tinha a doença. Sílvia entrou na cena para ser a avó da criança e Pedro (o único do sexo masculino no grupo naquele dia) representava o pai. A cena foi muito emocionante, especialmente para Pedro que dizia no papel que desempenhava que preferia que fosse ele a ter a doença. Nos comentários, Pedro disse à mãe e a todos nós que sempre pensara isso, mas que não tinha coragem de dizer para não magoar a mãe: “Eu não queria ser diferente, eu queria ser como meus irmãos mesmo que morresse cedo. Eu não queria ficar sozinho com minha mãe, ver ela sofrer o resto da vida.”<br />Sai do hospital pouco tempo depois e passei muito tempo sem me lembrar dessas cenas. Nos últimos anos, a Morte se fez presente muitas vezes na minha própria vida, recordar a história dos Pereira me dá alento e esperança.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-2311132906602200403.post-19567547913739409772009-07-14T12:42:00.001-03:002009-07-14T12:42:52.128-03:00LoucuraO corredor cheira o tempo amarelado pelos xixis-remédios-eletro choques. O arquivo verde e pesado que eu abro com o consentimento da médica, mas devidamente inspecionado pela psicóloga com a anuência da assistente social tem um sub cheiro, variação do amarelo do corredor mais o sufoco dos prontuários.<br />Lá estava a pasta dela: Ivonete. Mas poderia ser Joana, Maria Helena, Djanira, Das Dores. Todos estes nomes brasileiros carregados de demandas, descendências, esperanças, tudo recoberto pelo glacê da inconsciência. <br />O prontuário não é novo. Tem marcas de todos os doutores que a medicaram e que talvez tenham tido a fantasia grandiosa (loucos!) de cura. Anotações de algumas entradas e saídas, altas, descrição de melhoras e pioras.<br />Ivonete faz um balanço em sua cadeira com olhar perdido. Mas pode ser magnífica em outras horas.<br />Junto com a descrição de como se deu o primeiro surto (“A paciente diz ser a Virgem Maria, diz estar operando milagres, diz que seu hímen está sendo reconstituído, diz que salva pessoas de acidentes, diz...”) desenhos, cartas, bilhetes recolhidos pelo setor de terapia ocupacional do hospital. Desenhos totalmente sem formas, feitos a lápis e por cima, massacrando as linhas, rabiscos de giz de cera, revelam um talento interessante, mas abortado pela loucura.<br />Ivonete sorri, gentil, quando conversamos e despregamos signos aéreos, de pouca valia para o mundo dos vivos, mas de grande interesse para pássaros e anjos. Eu sei. Ela não me vê. Ela não vê ninguém. Somos apenas candidatos a pedidos de milagres dos quais ela necessita para dar conta de sua usina de culpas. Caso consiga operar milagres, é boa (sic). Se não o faz, é uma monstra (sic).<br />Guarda ainda as letras redondas e mineiras de professora do interior. Cartas e bilhetes são endereçadas para seres anônimos, com a lógica inapreensível para outros sem chave do sagrado de seus textos. Outros escritos para o seu pai, morto, cheio de pedidos de clemência e perdão, informando de sua virgindade de moça direita.<br />Nenhum de seus escritos fala dele. Não e não. Seu nome não pode ser pronunciado jamais, pois o pai, no céu, lugar evidentemente adequado para seres de tamanha bondade, pode ficar chateado.<br />O relato médico nos diz que o pai morre ao saber da perdição de Ivonete com o filho de um inimigo, vizinho de fazenda. A desavença, a bem da verdade, não é exatamente entendida, pois o motivo primeiro está perdido na neblina dos anos e nem ninguém sabe direito o que aconteceu (sic). <br />A família de Ivonete não faz qualquer acusação: o enterro segue lento patinando na culpa silenciosamente imputada a uma paixão descontrolada. Ninguém diz nada. Apenas o vapor caustico da culpa corrói tudo, destrói tudo.<br />O sorriso doce e distante de Ivonete reitera a desconexão daqueles que habitam um outro mundo, o paraíso e o inferno, andaimes invisíveis construídos nestes quartos e corredores por onde ando.Devanir Merengué e Valéria Britohttp://www.blogger.com/profile/10589249787552034021noreply@blogger.com0