O pai era médico, a mãe pianista. Marina sofria. Sofria com a ausência do pai, com a frieza com que ele a cumprimentava passando a mão nos seus cabelos louros e dizendo com voz infantil: "Como você é linda!" Sofria com a presença do irmão mais novo que roubava toda a atenção da mãe, que não era muita depois dos concertos, gravações, aulas.
Marina sofria e ninguém notava, linda, loura, rica, inteligente e gentil, todos a achavam maravilhosa. Todos os adultos. As outras crianças, não. As meninas, entre enciumadas e invejosas, a chamavam de "metida". Os meninos, entre desejosos e temerosos, "nem olhavam" para ela.
Marina tinha pesadelos, terrores noturnos. Marina não se lembrava bem dos sonhos, mas seus gritos "acordavam a casa toda" e preocupavam a babá que "levava um tempão" para acalmá-la.
Marina tinha oito anos quando nos conhecemos. Seu pai, que já havia feito psicoterapia, a trouxe na primeira vez "para ela ter alguém preparado para conversar". Sua mãe, depois de muita insistência, apareceu um dia ao final da sessão e disse rapidamente, "Não concordo, acho uma bobagem, pesadelo é coisa normal. Mas o pai quer e ela me disse que gosta. Como ela não tem outra atividade nesse dia à tarde, não me importo. A babá traz."
Marina era muito independente. Decidia sobre suas roupas, sua alimentação. Decidia sobre suas atividades: violino, natação, inglês. Trazia os cheques e levava os recibos. "A Vilma é legal, mas ela não sabe direito certas coisas e se der alguma coisa errada, eu não quero que mesus pais briguem com ela."
Marina desenhava muito. Flores, flores, flores. Marina conTava histórias e gostava de usar fantasias nas dramatizações. Em pouco tempo, não tinha mais pesadelos. Mas, começou a "desobedecer", "fazer birra", "brigar com o irmão". O pai e a mãe apareceram, juntos, preocupados. "Ela está pior!" Não tinham disponibilidade para compreender o sofrimento de Marina. "Ela tem tudo." Não tinham disponibilidade para estar mais perto de Marina. "Somos muito ocupados!!". Entendiam meu trabalho. "Sabemos que a terapia provoca sentimentos, mas não temos como cuidar disso. Será que não é o caso de uma escola em período integral?"
Marina foi estudar numa escola bilíngue, de período integral. Fez novos amigos, entrou para um time de futebol. "Não é muito feminino, mas ela gosta e ficou bem mais calma." Não havia celulares naquela época, Marina pediu o número do meu bip: "Às vezes, quero contar umas coisas para você e se espero a sessão, esqueço."
Marina me ligou em um sábado à noite. "Estou na casa da minha amiga e não acho meus pais e é folga da babá. Você pode vir me buscar?" Encontrei o pai, ele mandou um táxi, Marina dormiu na casa da avó. Marina me ligou no domingo pela manhã. "Dormi na casa da minha amiga e minha mãe até agora não veio me buscar. Eles vão sair, o que eu faço?" Encontrei a avó, ela não sabia onde estavam os pais e não podia ir, mandou o motorista. Marina me convidou para seu jogo de futebol. "Meu pai disse que vai, mas já sei que não vai. Minha mãe não gosta. Queria apresentar você para minha professora."
Conversei com os pais de Marina. Eles se explicaram sobre suas dificuldades em conciliar atividades. Me perguntaram se eu não poderia cobrar como uma sessão e atender aos pedidos dela. Eles não entendiam meu trabalho. "Nós somos muito ocupados, ela se sente sozinha e gosta de você. Terapeuta de criança é meio como uma babá ou uma professora, não?"
Marina ficou mais uns poucos meses. Sua mãe descobriu que seu pai tinha "várias amantes", separarou-se. Marina mudou-se com a mãe e o irmão para o exterior. "Fica com meus desenhos, para você lembrar de mim."
Inspirada por uma de minhas supervisoras, queria ser uma psicodramatista que atendia pessoas de todas as idades. Depois que tive filhos, parei de atender crianças.
2 de maio de 2010
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